quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

[0517] Bernardino Guimarães, o ambientalismo em prosopoemas


Nasceu no Porto em 1960. Ambientalista e consultor da RTP, escritor e jornalista independente, editou a revista “Tribuna da Natureza” e foi um dos fundadores do FAPAS – Fundo para a Proteção dos Animais Selvagens e também da Associação de Defesa do Ambiente Campo Aberto.


O CREPÚSCULO

Hoje de tarde achei que o crepúsculo é um erro ortográfico. O entardecer sanguíneo, sem estrelas para compor o vazio. Mas conheço a voz do mar: é rouca, grave, definitiva.

O crepúsculo é um adeus. As cores despedem-se e peço-te a mão, o braço, o cigarro, os lábios que dão sentido às escadarias onde nos sentamos.

O crepúsculo é uma maneira de tudo acabar em apoteose ardente.

O absurdo ronda-nos. (o riso das ondas, o olho mordaz de um farol.)


A AVE

Um dia. O melro no meio diz: dia. Encontro a palavra, digo: palavra. E ela vem. Uso a voz, ouso-te falando. Eco é o ar que escuta. Diz a pedra: fico. Sei-lhe ser mago, e falsário. Ensino nas mãos o pássaro inicial. Seio de sabê-lo, pereço, porque não voo. Um dia. O céu de esponja encontra o verbo. Pendurado no vento, forço a alma, ácida, de almeida e nuvem. Ouvem-se ruídos e caem calendários, pesados. A ave nítida, desprendida do sono, diz: madrugada. E ela nasce.


PALAVRAS, PALAVRAS

Marítima a maneira de olhar. Fácil a tarefa das mãos, pousadas. Queres que recorde, ou quero eu que queiras tanto. Está bem. A luz molhava os movimentos. Tínhamos por detrás a cidade. Claro que era cinema e poesia. Um simples sorriso súbito e era claro aquele momento. Porque se geravam sombras e sobras de vultos naquela luz inclinada. Claro que escurecia. Era manhã como as macieiras são macieiras, antes de terem nome, mas escurecia. Não sei se a memória não me trai, quando em palavras as nuvens formavam um alfabeto denso e húmido, que as nossas vozes procuravam traduzir. Sei que a cidade nos servia de cenário e as nuvens de biombo. Porque era manhã nos teus olhos e em mais nenhuns isso se via, tão claramente. Queres que descreva os trabalhos da ave, a asa do vento? Foi um tempo de sombras medindo-se e de chumbo no céu, ameaçando gaivotas. Doce a maneira de lembrar, fácil o gesto dos ombros. Palavras, palavras.

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