terça-feira, 16 de abril de 2019

[0628] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (25) Rebocho, a luta de gerações


Por vezes, a luta geracional ressalta como tema de Rebocho, como o mostra este poema publicado em “Canto Finissecular”
 

CANTO FINISSECULAR

começamos pelo começo: são agiotas os deuses
e pagamos as suas dádivas com língua de palma e meio. desafiamos
os preconceitos divinos quando jogamos na dívida e logo
os juros.
o que tem um milénio que outro não tenha?
de modo assumido:
o que do assobio do tempo me fica no ouvido?
cada ano perdemos e ganhamos. o que perdemos?
o que ganhamos? em cada século perdemos e ganhamos.
o que perdemos? o que ganhamos?
perdemos e ganhamos em cada milénio.
o que ganhamos? o que perdemos?
esta a contabilidade das dificuldades
e nela perdemos a cabeça.
quanto a mim
não me preocupa o futuro que me é ausente
ou disso me convenço; cá dentro há uma fezada de que o mundo
não acaba
- é uma fezada quase certeza de dúvidas e insistências: não acaba
não acaba. mas que mundo?

se já torrentes
nadei e delas me enxaguei,
aterro-me das enxurradas por que não passei
ou me entropeço nesse alvoroço que quisera recolher no peito
e ser todo o mar. amargos de boca de quem sabe que tudo
é só o possível e é defeito.
não me exijam ou isto ou aquilo que eu passo ao lado
porque escolher é perder. o troço é o jeito de ir até onde
recusar regressar ou ficar a ver a onda a enrolar o desejo
inesgotado na praia: quanto deste tempo me fica no ouvido?
e o que sobra deste tempo? que plásticos sobrevivem na água?
que lixos sobrepesam os dias?
canso-me do milénio que não dormirei quando as almofadas
ajeitam o passado e tentarei ir com os ventos
sobre o negrume das marés: contarei os mortos.
esses são os números do porvir os números
inalterados das gerações das certezas. recolherei os sismos
e os estragos: contarei os mortos. esses são os números inalterados
das gerações das dúvidas. oh, sim, deixem-me coçar o milénio que chega
e cheirar o começado mesmo
com os olhos adornados na praia enquanto a lua aquece alucinações.

deixem-me. sei lá o que sobra para o outro milénio
e o que dirão as más línguas os críticos os historiadores
(meto-os na mesma molhada). sobrará alguma coisa?
o meu nome? a minha foto? um papel? uma memória? um osso?
quero convencer-me de que me estou nas tintas
para o que possam pensar da minha poesia que afinal
são os meus dias e desassossegos. estou-me nas tintas
para o que possam pensar ou dispensar de pensar
porque nenhum poeta é poeta, apenas é oráculo
dos silêncios e das vozes e do círculo. e que pensem
que isto é profundo ou é ridículo: estou-me nas tintas.
o que virá virá a seu tempo. eu cá sei o que me leva a pensar
por estes neurónios e não por outros e os pontos cerebrais
das minhas melancolias e se o futuro os autopsiar
muito me hei-de rir: analisem então as gargalhadas
que dos meus poemas, se um dia lhes buscarem os originais
só encontram as águas poluídas nos canais.

mas hoje, quase ao virar de século, na leveza
dos meus sessenta anos, não vou mentir. confesso: detesto a forma,
a poesia engravatada. prefiro investigar, minuciosamente investigar, à lupa, com bisturi, chafurdar no absurdo se for preciso, investigar
mesmo que chegue a nada. abaixo as regras, auden, os tratados,
essas coisas todas. sento-me no sentimento vestido
com a minha pele (escrevo nu), sento-me no pensamento
e vou pelos meus dedos em busca de um horizonte qualquer
nas minhas artérias. eu sei porque vejo:
o horizonte são os barcos - e a viagem? abaixo as regras: quero falar alto se me apetecer, mijar se me apetecer, tirar macacos do nariz se me
apetecer ou se me apetecer mergulhar em qualquer arte menor
desde que me dê gozo. a regra é esta, só esta, única:
estar vivo enquanto estiver e ter o gozo todo
que na poesia couber. e desobedecer.

e se, num golpe de rins, eu dissesse: milénio novo, agarro-te
pelos tomates?

e se eu, de pelo na venta, lhe exigisse a imortalidade?
se há por aí planetas e coisas e maquinetas e remédios e conjunções
e laboratórios e investigações e invenções porque há-de o milénio
passar sem mim? e porque hei-de eu passar? por fatalidade?
porra para a fatalidade! um vírus, um bacilo, valem mais do que homem?
e para quê a imortalidade? por dó, por pena, pelo amargo de boca
de não levar comigo a vida (não me envergonho de dizer que isso me arrefenta), para ver, para continuar a ver,
continuar a sentir com as minhas sensações e com elas ganhar a certeza,
a minha certeza, de que o mundo continua, continua sempre
porque continua comigo. e para quê? nem eu sei
se este solilóquio é poesia e que outra poesia possa haver
para além da dor de costas das nossas dúvidas
e da dor de barriga do nosso limite.
querem metáforas quando isto quando isto é tão simples?

pois é, meus caros, constrói-se o futuro com as mãos vazias
mas capazes de torcer os cornos da cor de esperança.
desfolham-se calendários e colocam-se memorandos nas páginas dos augúrios. assaltam-se as datas para contabilizar propósitos
(se ao menos o milénio fosse uma convenção)
e os nervos em franja adormecem nos silêncios como as moscas
estoiram nos infravermelhos: os séculos são a consciência
dos limites quando aprendemos, no dia a dia aprendemos
que vivemos de mortes, que não as dispensamos:
somos os cangalheiros das nossas ilusões
a apodrecer em certezas, a adubar as dúvidas.penso em mim
- onde está o corpo que tive, a dor de dentes de há dez anos,
o sangue que já correu para os lenços, onde estão as feridas,
as folhas que caíram das árvores? os meus filhos estão na idade
das paixões e das despaixões que já não tenho
 - são as coisas deles, não as minhas. dia virá em que repetirão
as perguntas e estarão maduros para outro século
enquanto os seus filhos terão paixões e despaixões próprias

que não serão deles. minhas muito menos que estarei
fora da contabilidade. tudo isto para vos dizer: chegais ao tempo
e a poesia merece a pena. Recusai os cartazes: proibida a entrada
a pessoas estranhas à obra. que sabemos capatazes?
que obra nos pode ser estranha? forçai a entrada - isso é poesia.
recusai as teorias: as palavras têm preceitos.
que sabemos teóricos? montai os cavalos das palavras
- isso é poesia. respirai - isso é poesia. comei - isso é poesia.
falai - isso é poesia. amai e odiai - isso é poesia.
vivam e morram - isso é poesia.
matai se for preciso - isso é poesia. desobedecei - isso é poesia.
nunca, nunca por nunca ser, aceiteis as marradas do touro do futuro:
agarrem-no pelos cornos
que eu, nos escombros do meu século, vos abençoo.

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