terça-feira, 9 de abril de 2019

[0620] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (24) Nuno Rebocho, o viajante


Três poemas de “Canções Peripatéticas”, recordando velhas poéticas de quem sempre gostou de pôr em verso as suas peregrinações, neste caso Espanha.


A LIÇÃO DAS DORES

não desesperemos que sempre um tempo
precede outro tempo e uma sombra
oculta outra sombra. os desassombros
também murcham como as papoilas
e podem ser tão efémeros mas a chuva os resgata
: servem para isso as sementes adormecidas
nos torrões e as vespas que nos viços os sugaram.
até os silêncios servem mesmo quando são lágrimas
e as noites são cansaços. as trufas
também se acolhem onde os sobros choram
na lição das dores - que são mestras
e tecem os dias felizes
com os fios das saudades. são penélopes
entretendo os calendários dos úteros envilecidos.
são os regatos que no seu percurso serão mares
e ensinam às bocas a vontade de cantar.


EM CASA DE GARCIA

fui a tua casa, Federico Garcia. mas tu não estavas,
nem o Horto era o que então havia. a porta fechada
escondia lendas vendidas com sobranceria. tu não
estavas, Garcia, só o cicerone da casa que não tiveste
enquanto vagueavas em busca da tua morte, mesmo
a que não querias. a tua casa, Federico, não é a tua
casa: é uma porta por onde se entra para um vão de
escada e uma escada por onde se trepa até aos silêncios.
granada nada sabe dos sortilégios nem por onde rumam
rotos de mortes, nem por onde sonham despidos
de mágoas. a tua casa, Garcia, já é branca e os curiosos
enfilam-se à porta com senhas nas mãos: matam-te
todos os dias, salvo nos de descanso. e às cinco da tarde
respeitam-te. valem outras balas estas bulas de ironia
a cem pélas por visita, Federico Garcia. e os touros
que então havia e matavam como lhes cabia são agora
mansos ou embolados ou enojados. crescem no Horto
nem nardos, nem cardos - só flores sem fantasia.
fui a tua casa, Federico Garcia. mas tu não estavas.
os cicerones levavam-te para outra morte
em grupos de cinco. e cobravam a entrada.


EM NOME DE GOYA

pintava o Surdo o silêncio do sangue
(ah, charneca de amarelos touros)
e crestava a romaria em san isidro
mais uma chusma de arrolados mouros.
pintava o Surdo a tristeza do vidro.

- de zaragoza que cores alvorotaram para as searas?
de onde roçaram os aromas infantis em bregas de pele
e morderam o pó das apressadas feiras? que bandarilhas
desfraldaram as extremas para o vício dos combates?

pintava o Surdo o negrume das chamas
(ah, charneca de rubros touros)
e fuzilavam-se peitos sobre la moncloa
por onde se esvaíam dobras de tesouros.
pintava o Surdo o que o olhar não perdoa.

- que vim à sorte de cara lavada por lides de crestadura
que sobestava o que pimpilar se não podia. e em nome
do nome que o tempo dava, o tempo fazia a carne.
sortes de paleta nas muletas se escondiam. era em nome.

pintava o Surdo os dentes de saturno
(ah, charneca de azulíneos touros)
quando na arena se desconjuntavam muros
pelos disparates de sacrílegos louros.
pintava o Surdo os cornos do futuro.

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