terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

[0582] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (20) Nuno Rebocho, as palavras necessárias


No “Discurso do Método” do seu poetar, o autor debate-se com o esquecimento que alguns bem desejam que um triste passado faculte, desafiando “o lugar sagrado dos testemunhos”. Quis sempre passar ao “outro lado das paredes da vida”, dilatando os momentos já vividos (e nunca esquecidos). O poeta o afirma: “a escrita é um risco, um assalto, um crime” onde há um cadáver em cada verso e um mistério à espera de decifração”.


A CELEBRAÇÃO DO ESQUECIMENTO


estilhaçam-se as ravinas dos segredos quando as vozes atravessam
o calcário da intimidade: o sagrado lugar dos testemunhos
onde as presenças cheiram. é aí que o esquecimento dói e eu passo
ao outro lado das paredes da vida coada do salitre
desvendando os lugares. sempre queremos
a dilatação dos momentos ou as palavras mudas e murchas
como baterias de mortes (as mortes que vão acontecendo dentro
dos dias); as palavras mudas como plantas adormecidas
nas águas paradas; as palavras mudas das retaliações e dos tratados
como arames farpados nas fronteiras existentes; as palavras mudas
que se mudam nos núcleos cerebrais e deixam o rasto.
no calcário da intimidade desbravamos as loucuras e passamos
(como eu passo) ao lado das paredes para desvendar os lugares.

fecho os portais para a necessária pudicícia
de me buscar: a escrita é um risco um assalto um crime.
como podem saber que há um cadáver em cada verso
e um mistério à espera de decifração? e que fariam
aqui as polícias quase incólumes à corrupção do tempo?
é desnudo que escrevo como faço amor
e depois me liberto do sangue e dos vestígios: o crime
perfeito com bacanais de interrogações e de buscas.
deixo que a penumbra feche o quarto este quarto
dos meus segredos por onde os papéis navegam
e os dedos se perdem na procura das dúvidas.
se os meus senhorios soubessem destas poucas vergonhas
davam-me ordem de despejo e perdia o lugar de me esquecer.

é na claridade que as coisas se confundem: as coisas
são indefiníveis e múltiplas porquanto a unidade é o esquecimento
por onde a luz entra pelas janelas a indicar-nos as rotas onde
as coisas se fazem objectos e pessoas onde os lugares
se definem no breve momento da memória. tudo é disperso
e o esquecimento constrói-se como um traço de união
com a eternidade (seja ela qual seja) por onde a luz
é apenas a velocidade do possível (seja ele qual seja).
é na claridade que as coisas se destroem e se definem
e se preparam para o estonteante. na claridade
preparamos a memória para o esquecimento.

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