quarta-feira, 3 de abril de 2019

[0615] Nuno Rebocho, o redespertar, em repetição de um poema sempre bom de relembrar

 
Nuno Rebocho e Guillaume Apollinaire

Foi um poema que renovou toda a sua poética, este “Santo Apollinaire (meu santo)”. Pode mesmo dizer-se que houve um antes e um depois.

SANTO  APOLLINAIRE (meu santo)

          chuva de cascais. a cabeçorra de apollinaire entra pelo tugúrio e dói-me as costas, dói-me a paciência & o piano que toca dentro um nocturno em si maior (paulo salgado). e dói-me o piano nos olhos de apollinaire, cabeçorra entrapada de branco. e dói-me o inverno que chega & a nudez das árvores. chove em cascais - é isso. não é em santiago (que se lixe santiago). chove aqui. caraças
          chove
o
sentimento
dentro
da
casa
que
é
sala
          chove
dentro
dos
ouvidos,
das
letras,
dos
números
          paciência: cascais é o mar. cascais é o que está aqui por dentro da chuva.
impermeável             
          mar apollinaire em algum lado possível
como peixe-porco em volta do anzol
e que só não é bom porque é temível
e só não é ronha porque é sol
          meu santo, santo apollinaire apolíneo,
(entra na cabeça o som de palmas - o pianista ataca)
são guilherme circundante
(entra pelos ouvidos o convent garden - o pianista ataca)
ruivo de raiva & azulíneo,
(chopin distrai-me, distrai-me sempre - o pianista ataca)
amante de nenhum amor amante
(porquê chopin esta insistência nos agudos? o pianista ataca)

          de onde basta o silêncio
algum castigo de viagem,
basta o que não basta
& já é bastante
          que eu vou contigo,
apollinaire santo
          hei-de ir de olhos fechados
mas com paisagem
          e então
mordemo-nos com o cio dos lobos
e o usufruto da alcateia
          cuidado: saltam à arena
os bobos se o mar
se afunda na areia
          mar que dissolve os braços
desbragado. cuidado
          consome verdes & azuis,
descuidado. cuidado
          mar que arrebenta na boca,
desbocado. cuidado
          mar que é merda e é vida,
desamordaçado. cuidado
          desAMORdaçado
          sacrifica o mar as algas na terra firme

- oceano guilherme, quem te redime?
eu não que de gripes não morro.
eu não que não me mancho nem me desmancho.
eu não que sonhos não percorro
sem bracque, sem jarry, sem socorro
          ah, temos obrigações:
temos a obrigação de destruir a arte
para que os homens não tenham a falsa consciência da sua infelicidade
          temos a obrigação de destruir a forma
para que os homens não tenham o falso sentimento da sua eventualidade
          temos a obrigação de destruir o som
para que os homens não tenham o falso pressentimento da sua identidade
          temos a obrigação de destruir o discurso
para que os homens não tenham a falsa inocência da sua imensidade
          temos a obrigação de destruir o silêncio
para que os homens não tenham a falsa comoção da sua humanidade

          somos humanos, xiça, e
neste mar de corpos construídos
como cheiros domesticados
me escondo eu preso pelos sentidos
          mar por outros mares nunca navegado,
som à margem do rito dos ouvidos,
sons ganhos, sons perdidos, naufragados
          ó grande acrobata. ó mestre das cantigas
          num mundo construído de anversos
fica a realidade para além das lombrigas,
ficam povos para lá das conversas

queria dizer-te: como tu tivemos muitos
(já passaram, ninguém se lembra.
e quem se lembrará de nós meu santo?
quem se lembrará das nossas dores, dos nossos risos?
quem se lembrará de nós meu santo?
quem se lembrará de nós?
de nós no pó da história? de nós no pão da história?
que deus aí nos conserve
e te conserve a ti na mesma memória)

          tu és ilustre, tu és soberbo,
          (agora o piano castiga a fantasia húngara, cansado dos oboés. & eu cansado. piano, piano, flauta doce, címbalos, contrabaixos, piano, maestro de tudo, que fazes aí? piano, piano, a tarde avança, quase noite, cigarros, bênçãos, piano, fagote, neura, computador, cadeira, som, objectos, horas, oras, horas, tempo, tarde, noite, piano, cigarros,
          apolinére mastiga as palavras sem chuígame - turva-lhe a imaginação
          e lá está o piano, o piano, o piano, o piano
          tutítitutitutitutitutitutututututu vralllálálalá alguém tosse
          prrilipriliprliprlitutátutátutátutáprláprláprláTIITITITITI
oh dentro da cabeça, dentro da cabeça, dentro da cabeça
          meu santo)
ó grande desamado
          tu és poeta, tu és soldado
(que raiva, que raiva)
tão soberbo como o mar do outro lado,
tão soberbo como as rochas incapazes
neste estádio, sem mais, a aparição de santo apollinaire aos três sons,
a GRANDE REVELAÇÃO, assim mesmo em caixa alta. e disse o santo:

          a chuva que cai em cascais, já é esta diferente desta como é outra diferente
          esta chuva que cai já não é esta chuva que cai
a chuva de cascais não é a chuva de birre, não é a chuva de juso
o agora não é o antes nem o depois nem o agora
o agora só é uma parte do agora, a micronésima parte.
aprendei que tudo é efémero e o efémero mais que tudo.
é preciso construir o efémero. com minúcia. com sabedoria.
sobretudo aprendei a destruí-lo

estremunhei:
          pescador de baleias
vai-te embora
          vai-te embora, rapaz, fazemos as pazes,
ó ilusionista, ó artista de circo,
ó corno, meu cantor de sentimentos
          faz uma pirueta de adeus,
dá um salto em frente, mas deixa-me por amor de deus.
já tenho o que me baste,
pra quê mais tormentos?
          desconto vidas,
mais curtas outras, umas mais compridas
nem lhes meto dentro o sal,
mar salgado,
que quanto é melindre está começado
que quanto já é carne está sentido,
que quanto já é sangue faz sentido

         uma brisa aconchega-me o ouvido
e tu surges quando a tarde apodrece
porque apollinaire, meu santo, acontece
a baba da tarde não tem perdão.
o mundo talvez. eu não
          (GRANDE FINAL: TCHAC. meu santo apollinaire
           meu compère)

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