quarta-feira, 13 de março de 2019

[0608] Nicolau Saião, de regresso


De regresso a Ibn Mucana, Nicolau Saião envia mais três poemas. Sempre o acolhemos com alegria.


CIDADE

E ele pensou: hoje serei uma cidade
e depois serei uma árvore nessa cidade
e depois  ainda  um esquecimento
numa rua e num recanto de um pátio.
E quando essa cidade tiver figuras
de pessoas e de animais
pôr-lhe-ei ainda mais figuras
que se olharão entre elas e se reconhecerão

E desaparecerão pouco a pouco

para que fique apenas uma amargura
e muitos risos desconhecidos


MAGNÓLIA

Naquela terra não havia magnólias. À beira dos caminhos
nos jardins e nos pequenos vasos de flores dentro das casas
as mulheres e os floristas cultivavam aspidistras
rosas-chá, malmequeres e pequenos bolbos de tulipas vermelhas.
Um namorado, certa vez, colocou na botoeira um girassol.
Meninas dos colégios assustavam-se e, correndo pelos parques
faziam esvoaçar contra a luz candente da tarde pequenas flores campestres.

Então, um dia, apareceu na cidade um hortelão
que num pequeno cesto tinha um pano multicolor
sobre algo que não se conhecia.

Uma jovem destacou-se de entre os demais e disse-lhe
qualquer coisa em voz sumida. E o hortelão
olhou-a longamente.
E depois principiou a andar devagarinho.
E na rua começou a espalhar-se uma penumbra que de repente
todos perceberam que iria doravante ficar ali para sempre.   


GRANITO

Um poeta pode durar sei lá 80 anos
Há mesmo alguns que duram noventa anos                                             
Por seu turno uma mesa de madeira   dessas vulgares
dessas com um tampo de tábua que as boas donas de casa procuram
sem sucesso que fiquem menos rugosas
- e de repente um rasgão de luz o perpassar duma lâmpada
um traço de vela que alguém acendeu no escuro
devolve-lhe o seu perímetro real de pinho decepado
de pobre utensílio ou de superfície usual -
Mas dizíamos nós  aí vinte trinta anos
aí uns setenta se for bela usança de uma casa afastada?

Olhei e vi: um muro nem mesmo bem cuidado de
granito
(palavra que contém não apenas o simulacro exterior
de matérias geradas pelo interior da terra
mas também o que se sente ou se adivinha ou que
se desejaria fazer frutificar: e é a mancha
de qualquer líquido por exemplo    a água
mas nunca azeite ou vinho  ou até mesmo mercúrio
o sólido cruzando o seu contrário
enigma)
apenas pedras sobre pedras naquele campo a anoitecer.

E um arrepio correu-me dos dedos aos olhos.
E nada mais perguntei a mim mesmo.
E nada mais desde esse momento quis saber.
Disse para mim: granito.
Disse para mim: é então este o granito.
E olhei de novo em volta como se de repente

uma emoção anónima terrível singular me tivesse alcançado.

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