segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

[592] Adriano Botelho de Vasconcelos, o jeito angolano de poetar


Adriano Botelho de Vasconcelos nasceu em Malange em 1955. Secretário-geral da União de Escritores Angolanos, político (deputado), escritor e poeta.


SEM TÍTULO

A morte da música pode ser lisa entre o início de um verão
e a direção que faz o silêncio. A surdez levanta a imagem
que a sombra distraidamente enterrara a cinco
palmos do chão. Para o coração se salvam as gaivotas
que levaram os mares para bem perto do sol que se despe
com o jeito das mulheres. A cicatriz é delicada
como se tivéssemos que olhar para a memória
com uma outra escolha astúcia. Hesita-se mas sabemos
que no ombro se fazem as glórias muito breves
e à deriva do coração. Cada erro persegue o espírito
que faz o teatro dourar mais que uma lágrima, um longo
cenário acaba por disfarçar-nos perante
o que nunca fomos. Faz-se um corte no dedo indicador
quando se perde a aurora para que a terra
fique mais perto da insónia. Vemos o abandono da juventude
vindo agora de nós uma interpretação
sem chamas. Por isso as palavras vão compondo
numa só estrofe o que a vida mesmo atenta não pode
consagrar.


POEMA

Um cabelo longo com o resto de túmulo aberto numa rua
principal da cidade. O Tiba abriria em cada uma das letras
dos poemas a sua aurora
com tintas há muito afinadas no número de portas
que não se abriram. O sol na taça partida pela lebre agora sobe
o umbral da janela onde a ninfa está perto do meu poema,
descalça e pronta para pedir uma lua
mais aberta que resgatasse o último namorado
que com a cintura tirou um quarto de hotel que sem lâmpadas caiu
do último andar da noite : os polícias vieram à paisana, pretendiam
escrever o melhor romance de um crime que não podiam
testemunhar. Uma noite por este postigo não faz o crime.
Chamem um carcereiro cubano distante da sua terra natal
para dizer se uma utopia tirada de um contentor
pode salvar um país quando Fidel
está acordado sobre o sono
que Lenine prefere passear com duas
algemas.


SEM TÍTULO

Uma ilusão levanta-se de um escombro mas não se apanha
o poeta que por ela mais a ensaiou num percurso e palco
que nunca fora estranho a Deus. Um cágado não pode passar
limpo e com estilo pela cinza porque não viu
como mais à frente se salvou uma lavra. Salva-se algo
como a primeira escolha
apesar de todos não terem para onde se virar senão
para a fé da palavra que nos pede
um momento
de vaidade.

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