sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

[0494] Ana Luísa Amaral, um olhar enviesado sobre a História


Nasceu em Lisboa em 1956. Professora, romancista, dramaturga, tradutora e poeta, obteve o Prémio Literário Casino da Póvoa em 2007, o Grande Prémio de Poesia da APE de 2007, o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi de 2007ePrémio Internazionale Fondazione Roma: Ritratti di Poesia de 2018.


SILÊNCIOS

         ao meu amigo Paulo Eduardo Carvalho,
               a saudade, sempre

«não queres fazer o silêncio
comigo?»,
perguntei-te uma vez
agora, sei:
irradiando em sol
de mil palavras,
sempre o fizeste
a ele e à alegria —
assim, alegria e silêncio
hão de ficar
os dois somados juntos,
lado a lado
e agora,
o sol está bem,
o azul igual a azul,
porque te tem
e as contas
todas
que tu corrigiste
hão de dar sempre certas


A IMPOSSÍVEL SARÇA

Que mais fazer
se as palavras queimam
e tanta coisa em fumo em tanta coisa
sarças ardentes do avesso
o fogo em labaredas que mais
fazer
Que mais fazer
se nem a água tantas vezes
descrita   abençoada
mas de mais e cristã
também castigo
Mas como nem castigo
nem as nuvens de fumo na sarça
do avesso
se tudo no avesso
das palavras
que não chegam
— mas cegam


A VITÓRIA DE SAMOTRÁCIA

Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual à Samotrácia.
Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:
qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita e fio de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.
Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?
O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente o joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas.


A MAIS PERFEITA IMAGEM

Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurónio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.

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