sexta-feira, 19 de outubro de 2018

[0298] Fernando Echevarría, o neo-barroquismo

Fernando Ferreira Echevarria, poeta luso-espanhol nascido em Cabezón de la Sal em 1929. Veio muito novo para Portugal, onde estudou. Perseguido pelo regime salazarista, exilou-se em Paris e depois na Argélia, fixou-se em Espanha (formando-se em Teologia). Professor e poeta, escreveu sempre em português. Identifica-se com o neo-barroquismo. Entre outros, recebeu o Grande Prémio de Poesia do PEN Clube Português de 1981, o Grande Prémio de Poesia da APE de 1991, o Prémio António Ramos Rosa, o Prémio da Fundação Luís Miguel Nava, o Prémio D. Dinis e o Prémio Literário do Casino da Póvoa de 2015.  


A SOLIDÃO É SEMPRE FUNDAMENTO DA LIBERDADE

A solidão é sempre fundamento
da liberdade. Mas também do espaço
por onde se desenvolve o alargar do tempo
à volta da atenção estrita do acto.
Húmus, e alma, é a solidão. E vento,
quando da imóvel solenidade clama
o mudo susto do grito, ainda suspenso
do nome que vai ser sua prisão pensada.
A menos que esse nome seja estremecimento
— fruto de solidão compenetrada
que, por dentro da sombra, nomeia o movimento
de cada corpo entrando por sua luz sagrada.


A VELHICE É UM VENTO

A velhice é um vento que nos toma
no seu halo feliz de ensombramento.
E em nós depõe do que se deu à obra
somente o modo de não sentir o tempo,
senão no ritmo interior de a sombra
passar à transparência do momento.
Mas um momento de que baniram horas
o hábito e o jeito de estar vendo
para muito mais longe. Para de onde a obra
surde. E a velhice nos ilumina o vento.


LENTOS NOS FOMOS ESQUECENDO

Lentos nos fomos esquecendo. Quando
o tempo da velhice nos foi vindo
a tez apareceu amorenada de anos
e afeita ao espírito.
A lavoura sabia aos nossos passos.
Até os desperdícios
iluminavam debilmente o armário
e a penumbra dos rincões escritos.
Mas nós só estávamos
em nos havermos esquecido.
Ou, às vezes, a aura do trabalho
quase fazia com que na mesa o sítio
aparecesse coroado de anos
sobre a mão a mover-se pelo seu próprio espírito.


QUALQUER COISA DE PAZ

Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.

Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.

Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área

de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruína
a luz da fronte onde a atenção domina.

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