sexta-feira, 19 de outubro de 2018

[0297 Papiniano Carlos, a voz neo-realista


Papiniano Manuel Carlos de Vasconcelos Rodrigues nasceu em Lourenço Marques (Moçambique) em 1918 e faleceu em Pedrouços, Maia, em 2012. Desde a infância radicado no Porto. Engenheiro, escritor, dramaturgo e poeta, foi um dos nomes do neo-realismo português. Parte da sua obra foi apreendida pela PIDE salazarista. Militante comunista, foi por três vezes preso pela polícia política, dirigiu a revista “Notícias do Bloqueio” e foi director do Teatro Experimental do Porto.


CÂNTICO

Belo é ver florir os galhos
das velhas árvores.
E ver chegar as aves
que voltam do Sul.
Belo é o sangue rubro
dum lanho fresco,
e o riso que nasce
das nossas palavras.
Belo é o vir da manhã
sobre os telhados nus
das cidades brancas.
E mais belo ainda
que este sol visível
enflorando, amor,
teus longos cabelos
de guizos dourados:
mais belos que os ventos
cavalgando as nuvens
e dizendo-nos: vinde!,
e que o meu gênio abrindo
suas asas nos céus:

Mais belo que o fluir
silente desta célula
fluindo nos cosmos:
Mais belo, amor,
que a tua própria beleza

é este sol inviolável,
rútilo, no fundo de nós.


POEMA

Antes isto fosse
mãos e pés verdadeiros,
caminho verdadeiro
e machados,
arados,
mãos crescendo nas trevas.
Antes isto fosse
um canto de galos
além nos quintais,
e homens correndo
nas sombras da noite.
Ah, fossem isto ventos,
fossem isto ventos!
desabar de casas,
largada de navios
na madrugada
com acenos e gritos reais.
Fosse isto sangue
a ensopar-me a camisa,
fosse isto sangue!
quente e espesso
nas minhas mãos.


CAMINHEMOS SERENOS

Sob as estrelas, sob as bombas,
sob os turvos ódios e injustiças,
no frio corredor de lâminas eriçadas,
no meio do sangue, das lágrimas
caminhemos serenos.

De mãos dadas,
através da última das ignomínias,
sob o negro mar da iniquidade
caminhemos serenos.

Sob a fúria dos ventos desumanos,
sob a treva e os furacões de fogo
aos que nem com a morte podem vencer-nos
caminhemos serenos.

O que nos leva é indestrutível,
a luz que nos guia conosco vai.
E já que o cárcere é pequeno
para o sonho prisioneiro,
já que o cárcere não basta
para a ave inviolável,
que temer, ó minha querida?:
caminhemos serenos.

No pavor da floresta gelada,
através das torturas, através da morte,
em busca do país da aurora,
de mãos dadas, querida, de mãos dadas
caminhemos serenos.

Sem comentários:

Enviar um comentário