segunda-feira, 15 de outubro de 2018

[0287] Fernando Assis Pacheco, a voz insubmissa


Fernando Santiago Mendes de Assis Pacheco nasceu em Coimbra em 1937 e faleceu em Lisboa em 1995. Jornalista, escritor tradutor e poeta, director-adjunto do jornal “Se7e”. Uma das primeira penas que escreveram sobre a guerra colonial, faleceu de síncope à porta de uma livraria.


MONÓLOGO E EXPLICAÇÃO

Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.

Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas
.
Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.

Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.


UM HOMEM TEM QUE VIVER

Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
– um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

Cheio de luz – como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio dos mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.


PRESO POLÍTICO



Quiseram pôr-me inteiro numa ficha.
O dia e a noite são iguais por dentro.
Não há papel que conte a minha vida
mais que estes versos de punhal à cinta.
A barba cresce, e cresce a voz armada
descendo pelos muros tão tranquila;
tão tranquila que já nem desespera
de ser apenas voz, não uma guerra.

Quiseram pôr-me inteiro numa ficha.
Não há papel que conte a minha vida.
Mais que estes versos, esta mão estendida
por sobre os muros só de medo e pedra.



Quando saíres, amigo, não me esqueças.
Fico à espera da tua novidade.
Olha bem que farás da liberdade:
quando saíres, amigo, não me esqueças.

Quero mais fazimento que promessas.
São de prata os enganos da cidade
com que outros sujeitam a vontade.
Não me esqueças, amigo, não me esqueças.


AS PUTAS DA AVENIDA

Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena

vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz de mando
do director fatal que lhes ordena

essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena

mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho vinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena

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