segunda-feira, 15 de outubro de 2018

[0286] Vasco Graça Moura e o amor indefectível pela língua portuguesa

Nascido no Porto em 1942, Vasco Graça Moura faleceu em Lisboa em 2014. 

Advogado, escritor, tradutor, poeta e político, obteve o Prémio Jacinto do Prado Coelho de 1985, o Prémio do PEN Português de Poesia de 1994, o Prémio Pessoa de 1995 e o Grande Prémio de Poesia da APE de 1997. 

Foi Secretário de Estado primeiro da Segurança Social, depois dos Retornados, director da RTP2 e da revista “Oceanos”, presidente da Comissão Executiva das Comemorações do Centenário de Fernando Pessoa, da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses e da Fundação do Centro Cultural de Belém. Eurodeputado durante dez anos.


SONETO DO AMOR E DA MORTE

quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão

quando eu morrer segura a minha mão
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não

tivesse de acabar, sempre a dor,
sempre a doer de tanta perfeição
que deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.


INSINCERIDADE

quis-nos aos dois enlaçados
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco

nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés

a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio

sem perdão e sem disfarce,
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada

por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.


NO OBSCURO DESEJO

no obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção

que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,

e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar

a sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco.

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