Daniel Euricles Rodrigues Spínola nasceu em Ribeira da Barca, ilha de Santiago, Cabo Verde. Professor liceal, tendo ainda leccionado na Faculdade de Línguas Estrangeiras da Universidade de Havana, consultor literário, artista plástico, jornalista, escritor, poeta e dinamizador cultural, é presidente da Sociedade de Autores de Cabo Verde, SOCA, coordenador da Associação de Escritores Cabo-verdianos e membro da Academia de Letras de Cabo Verde e director da revista “Pré-Textos”.
PASÁRGADAS DE SOL
Como água e como sol que somos,
De nós mesmos nos alimentamos e procriamos
Inventando cascatas de luz no escuro das trevas Concebendo
luares de água em inóspitos desertos
Construindo pontes, jangadas, céus e paisagens mil.
Às vezes passamos, como um sonho,
Ou como uma brisa pelas asas de um pássaro;
Outras vezes somos um pesadelo, uma alucinação,
Numa planície louca que é o outro lado de nós
E, para se ser mais explícito, é preciso confessar
Que, se por dentro trazemos esse rio, onde nos bebemos e saciamos,
Na mesma proporção somos esse Sahel e esse sol insaciável
Que nos consomem inteiramente e não nos deixam florescer.
Mas, assim como uma ameba, dela mesma se faz,
Nós, também, nos completamos – de água e de luz
E saímos a voar, girando como uma nebulosa,
Ou nos quedamos silenciosos,
Qual Oásis sedentário
Povoados de conchas e de estrelas celestiais.
E assim seguimos o nosso caminho
Refrescando a vida,
Aclamando o mundo;
Melodia nos nosso passos Pomos,
De cantos os nossos gestos Enchemos
E o verbo encontra-se sempre presente,
Na extensão da nossas mãos, pronto para o conforto e a consolação,
Esconjurando a desolação e o pranto da luz do dia.
O VITRÚVIO DE SANTIAGO
E é desses que falo
Desses de sombra fina
E auréola Lúcida;
Desses cuja adivinhação é um verbo,
Em primeira-mão,
E cuja definição
De provérbios, parábolas e metáforas se nutre
Que falo
Desses inscritos no espírito do mundo
Com as suas bocas em epigramas e ladainhas.
É desses cujo coração
Transbordante de Finason
- O cântico das palavras que
São liras e líricos lírios,
Em concerto de sedutores rios,
E que, ao ar que respiramos se assemelha,
Que falo
É desses
Que têm o cântico, em estigma, pelas dobras do caminho,
Enchendo a alma e a vida
- De quem ouve, de raízes e ramos;
Com seiva e sois respirando, que falo.
É desses que se assemelham à paisagem que adoram
Sobre a qual o suor vertem
Em incansável busca precária, que falo
E que, pela paixão da enxada sobre a terra,
Pelas sementes e milhos que, no pó,
Da paisagem a que se modelam,
E que os modelam, numa simbiose essencial,
O sonho de amanhã revivem, que falo.
É desses que,
Pela sedução quotidiana
De transformar a aridez desse
Destino, quase nu, quase inútil,
Cheio de imponderáveis arestas
- Distorcido e idêntico, onde a
Invenção da esperança fala mais
Alto que o desenho da certeza,
Que falo
E há ainda a outra vertente
Desses avatares sedentários e claros,
De que falo,
Cujo semblante
Liberdade e tenacidade em expansão transpira,
Ante o crepúsculo da aurora,
Ou sob a derme cinzenta da hora vespertina
Esses, de que falo,
Movimentam-se em ardentes vultos
Ao redor das madrugadas e tardes oceânicas
Com os seus membros febris e
O seu fio azul e transparente
Ao sol azul e confidente
Onde lançam, à luz das estrelas,
E do seu pétreo difuso, a sua sorte, esperando
O momento da glória e Glórico
O regozijo do anzol da carne, do anzol da vida plena,
Da vida farta.
E é nesse ínterim do diálogo telepático
Entre a solidão da espera
a mão que em silêncio trabalha
Que nasce o seu sal mais justo
E o seu sol mais radiante
Cheios de pássaros em revoada.
E não há palavras, não há voz
Que possam descrever
A visão desse interior iluminado
Com o júbilo do dia salvo
No entanto,
Só no aspirar do seu tabaco
E na limpidez do seu olhar sereno
Se distingue o seu riso colorido
E o seu humor de sol pleno,
Com a satisfação da parábola de Pedro no coração.
É de se falar também
Desses outros que as portas da ilha franqueia
Para ir beber em outros planetas
O néctar de sangue que necessita
Palmilhando, embora, a geometria
Das noites sem fins, das bússolas rotas,
Das setas duras, das sete partidas do mundo,
E dos dias múltiplos das mãos
Construindo
Os grãos e os frutos do regresso.
São desses que falo
Dos que para a incógnita
Da terra longe, das ilhas sem rosto,
Enfrentando o eco dos ruídos sem voz
No ondular das flamas, do frio e do vento
E velejam, em estonteantes harpejos,
Palpitando, atónitos, perante o deslumbre
Das colunas de vidro das cidades, estranhas,
Com as suas entranhas e veias de metais e parafusos;
São desses, que partem em primavera,
Do verão azul e cristalino
Para o baço do soturno Inverno
Deixando os templos das flores
E das estrelas quotidianas
Para irem sorver os pós das estepes rubras,
Deixando-se levar, ao relento das trovoadas,
E de transviados relâmpagos,
Com o sonho do regresso pelos olhares,
Enchendo de milagres as artérias e as premonições
Com os ombros e o fôlego em acesa combustão
Que falo
E nem é preciso referir-se aqui
Às atribulações das suas insónias matutinas;
Aos seus atropelos sem repouso
No afazer dos seus sonâmbulos e metafónicos passos,
Vagueando em soporíferos metabolismos;
Aos seus ambulantes pés, deambulando
Pelos andaimes da neve e da angústia…
E principalmente da solitária saudade,
Em trote pelo coração
Desses de que falo.
E é preciso ainda dizer mais
Desses de que falo
Desses de mística costela,
Desses cujo universo
Se resplandece de versos, uníssonos com as teclas e o ferro,
Pelos acordes dos acordeões e das navalhas em palpitação;
Desses que quebram o silêncio das terras batidas, distantes e melancólicas,
Adejando nas argamassas de betão, plenas de barro,
Para serem música e canto de “caminho longe”
Soando a serras e montanhas, a searas e voragens;
Pelas planícies soturnas, em noites jubilosas de luar e festa.
É desses que falo
Desses que souberam reinventar as ilusões
Para se erguerem por sobre as baionetas
Cravadas em esquizofrénicos sorrisos.
É desses que falo
Desses que caminham até os confins de todos os opúsculos
Com a hidropisia do mundo pelas veias
Entre o suicídio e o esquecimento.
É desses que falo
Desses que pelos delírios das urbes do mundo
Partem regressando
Como signos de luz amando a noite.
É desses que, com o Funaná pelos campos se alastram,
Em compassos de passos dados em reviravoltas,
Incitando à dança e ao rodopio,
À roda do pó e das emoções em orquestrações,
Que falo
É desses, de ritmo rural em delírio e possessão
Que aos pares se enlaçam, plenos de alegria,
De movimentos, de abraços e apertos,
Contagiando homens e mulheres, à Total entrega
À comunhão da música,
Que falo
E falamos assim,
Embora como quem esboça um iceberg,
Desses que, por ironia, se nominaram vadios,
Ao renegar a escravatura e a humilhação,
Alcandorando inóspitas e ermas montanhas
- Em demanda de liberdade e soberania,
E que veio a ser Badiu
Esse homem de múltiplas raízes
E ousados ramos e frutos.
Sem comentários:
Enviar um comentário