quinta-feira, 11 de outubro de 2018

[0268] Almada Negreiros, futurista e tudo

José Sobral de Almada Negreiros nasceu em Trindade (S. Tomé e Príncipe) em 1893 e faleceu em Lisboa em 1970.

Autodidata, foi artista plástico, dramaturgo, escritor e poeta, recebeu o Prémio Nacional das Artes de 1959 e o Prémio Diário de Notícias de 1966. Foi um dos faróis da vanguarda modernista portuguesa, abrindo o caminho ao futurismo com intervenções altamente contundentes. A sua fulgurante dispersão artística levou-o até Paris (1918) onde foi desde bailarino de cabaret a empregado de armazém, desenhador. Em 1920 voltou a Portugal, passando a Madrid em 1927, ligando-se aí à tertúlia do Café Pombo. Em 1932 regressa definitivamente a Lisboa, vivendo uma fase pré-fascizante. Fundamentalmente, assumiu quase sempre a rotura com as representações académica


O ECO

Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surpresas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p'lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher também, também chamou /Adão.
Teve medo: Mas julgando fantasia chamou de novo: Adão? E uma voz de mulher /também, também chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as setas todas, e a caça era nenhuma!
E ele a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ela fugiu-lhe.
- Outra que não Ela chamara também por Ele.


CANÇÃO DA SAUDADE

Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gémea /que nasceu sem vida, e amo-a a fantasiá-la viva na minha idade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde moras, dize se vives ou se /já nasceste.
Eu amo aquela mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de /outras galés perdidas em mares longíssimos.

Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes /apressadas.
Eu amo aquelas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais /os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemitérios - as lajes são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas /em leitos floridos virgens nuas, mulheres belas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as /silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que /eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.


CANÇÃO

A pastorinha morreu, todos estão a chorar. Ninguém a conhecia e todos estão a chorar.
A pastorinha morreu, morreu de seus amores. À beira do rio nasceu uma árvore e os /braços da árvore abriram-se em cruz.
As suas mãos compridas já não acenam de além. Morreu a pastorinha e levou as mãos /compridas.
Os seus olhos a rirem já não troçam de ninguém. Morreu a pastorinha e os seus olhos a /rirem.
Morreu a pastorinha, está sem guia o rebanho. E o rebanho sem guia é o enterro da /pastorinha.
Onde estão os seus amores? Há prendas para Lhe dar. Ninguém sabe se é Ele e há /prendas para Lhe dar.
Na outra margem do rio deu à praia uma santa que vinha das bandas do mar. Vestida de /pastora p'ra se não fazer notar. De dia era uma santa, à noite era o /luar.
A pastorinha em vida era uma linda pastorinha; a pastorinha morta é a Senhora dos /Milagres.


ESPERANÇA

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu fi-lo perfeitamente.
Para diante de tudo foi bom
bom de verdade
bem feito de sonho
podia segui-lo como realidade.

Esperança:
isto de sonhar bom para diante
eu sei-o de cor.
Até reparo que tenho só esperança
nada mais do que esperança
pura esperança
esperança verdadeira
que engana
e promete
e só promete.

Esperança:
pobre mãe louca
que quer pôr o filho morto de pé?

Esperança:
única que eu tenho
não me deixes sem nada
promete
engana
engano que seja
engana
não me deixes sozinho
esperança.

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