quarta-feira, 3 de outubro de 2018

[0236] Gastão Cruz, a expressão de 60

Gastão Santana Franco da Cruz nasceu em Faro em 1941. Professor, poeta, tradutor, crítico literário e encenador, foi leitor de Português no King’s College. Integrando a corrente da Poesia 61. foi um dos fundadores do Grupe de Teatro de Letras e do Grupo de Teatro Hoje. Recebeu o Grande Prémio de Poesia da APE, de 2004 e o Prémio Correntes d’Escrita de 2009.


ÁGUA SALOBRA

Falava-se da casa (a minha mãe
falava)
donde viéramos
porém pouco ficara do lugar colocado
à frente dos espelhos da infância
quando em penumbra a vida
se envolvia
Na casa nova a ria começava
logo depois do largo (a feira vinha
com a febre em outubro)
Havia no quintal um poço a corda ia
correndo na roldana e o balde
batia na água com um som vazio
era preciso
bater de novo até encher
subi-lo
com água que nem plantas poderiam
beber a ria vinha
até ali outrora
água salgada e doce misturara-se
ambígua no ar da casa sob os tectos
distantes
tal como a primavera
floria as malvas e aumentava os dias
e no inverno a noite começava
com a espera do meu pai que parecia
vir sempre tarde com
moedas novas reflectindo ainda
o dia findo
À mesa eu observava-lhe
a mão
a meu lado pousada e tacteava
na pele irregular as covas que no meio
os dedos estendendo-se formavam
No comprido canteiro do quintal
o pessegueiro dava flor mais tarde
que a branca amendoeira do quintal do lado
Durante o ano inteiro sobre o muro
os seus ramos tocavam-se


LEMBRANÇA DA RIA DE FARO

Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia

A MANHÃ

Esta manhã
                                                    hoje
                                                    é um nome
                                                    Fiama, Barcas Novas

É assim a manhã, um nome
para o mundo, abrir os olhos como
alguém que fala
Podem o tempo ou a
morte diurna
dar aos olhos abertos o nada das palavras
O sol será então
o silêncio no olhar ou a mão
sobre a testa que faz descer as pálpebras
como se os dedos dessem à cabeça a verdade
submersa nesse nada
e a manhã viesse
não como sombra vasta vestir a voz
do corpo
mas cobri-la da
luz
das palavras que faltam

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