Nascido na ilha de Moçambique em 1916, Orlando Marques de Almeida Mendes faleceu em Maputo em 1980. Foi biólogo, poeta, dramaturgo e romancista. Uma das primeiras figuras da literatura moçambicana, obteve o Prémio Fialho de Almeida em 1946 e, nessa data, o Prémio de Poesia de Lourenço Marques. Usou também os pseudónimos de Osvaldo Mossuril e de Zeferino A. Nhancale. Dirigiu a Associação dos Escritores de Moçambique.
INSTANTE PARA DEPOIS
A tarde viva está quase vazia
na esplanada represa de sombra morna.
Seis velhos mastigam recordações
com dentes cariados da memória
e o dia-a-dia com as falhas dos dentes.
Olhos distantes sobre os livros
e mãos e pernas entrelaçadas
um casal jovem intimamente suborna
o tempo minuto a minuto seguinte.
Na berma do passeio mufana parado
estende os dedos pedindo quinhentas
nem se sabe porquê e ninguém dá.
Passa um jipe da polícia militar
e um dos velhos mastiga em segredo
que aquilo anda muito pior por lá.
Os dentes e as falhas cessam de mastigar
recordações e a suave cadência dos pulsos
e a moça levanta os olhos húmidos
mufana encolhe os dedos e desliza
inteiro ao sol da rua e assobia
não se sabe porquê e ninguém sente.
Batem horas num relógio distante
e o jovem casal parte subitamente
para o seu primeiro acto de posse.
Atarde fica então mais vazia
com os velhos mastigando a voz sibilada
no dia raso à sombra morna.
Reina a paz na esplanada laurentina
JUVENTUDE
É no tempo dos explícitos cantares
à luz do dia e na escuridão da noite
até uma explosiva prova de acção.
É o tempo das dúvidas inconfessáveis
os cigarros ardendo e o café já frio
e o rosto impassível atrás do jornal
contra a devassa de anónimos vigilantes.
É o tempo dos assaltos ao trânsito
imaginando as máscaras arrancadas
e a beleza de a riqueza como seriam
se não coexistissem incólumes com
ignorância e miséria e violência.
É o tempo da solidão entre as gentes
e de solitário sentir a multidão na savana.
É o tempo de não ter fé e crer ainda
na dádiva total por um beijo de amor
e pela sinceridade dum aperto de mão.
É também o tempo de receber-transmitir
uma secreta raiva chamada esperança.
Tempo que o pudor adulto faz caducar.
MINHA ILHA
Nos paralelipípedos das mais antigas infâncias
dei também meus passos balbuciantes e seguintes.
Todos os dias pés sem idade acorrentados
trituravam o salitre poeirado pelo vento ĺndico
e a cortiça nua das solas e dos dedos
fazia o périplo da ilha sobre corais
onde no palácio o governador-geral mandava despachos
que a corte recebia incrustada de pedrarias
nas entranhas digerindo riquezas carnais.
E o salitre vinha e ardiam os pés das gerações
e nos pátios dos prédios senhoris floridos
se construíam novos lares de oriunda linhagem.
Por ali estiveram Camões das amarguras itinerantes
e Gonzaga da Inconfidência no desterro em lado oposto.
Era a rota dos gemidos e das raivas putrefactas
e dos partos que haviam de povoar as américas
com braços marcados a ferro nas lavras e colheitas.
Ruíram paredes grossas chegaram outras naus
morreram marinheiros por ordem soberana de el-rei
e obediência de seus filhos sem coroa fixando preços.
Agachavam-se as sombras com a passagem dos rickshaws
na ponta da ilha farinha não levedava pão mas fezes
e o sono evadia-se dos ossos para o metrónomo da noite.
Em frente na costa que orla o interior
nascia o poeta e guerrilheiro Kalungano
que disparando balas cantaria para nós
o amor e as flores do dia de hoje litoral
em que a ilha se liga ao continente por uma ponte
e os barcos à vela macuas são donos do mar.
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