segunda-feira, 24 de setembro de 2018

[0189] Joaquim Saial e uma declamadora azarada...


Joaquim Saial (Vila Viçosa, 1953) revisita-nos (ver post 0161 AQUI), desta feita oferecendo-nos uma das histórias curtas do seu livro que se encontra pronto para edição, "Contos de vida e morte" (título provisório). 

Trata-se de um conjunto de trinta trabalhos onde a maior parte das vezes a morte está presente (o que não é o caso do presente texto) quase sempre caldeada por humor, ridículo ou sarcasmo.

É esta a primeira vez que "Ibn Mucana" publica prosa não poética. Mas que afinal se centra na poesia, atavés da infeliz declamadora que o autor aqui nos faz chegar.


A DECLAMADORA QUE LIA POEMAS SENTADA

Era o lançamento de um livro de poesia, numa terra do interior. Na sala cheia de público, as entidades municipais, a autora e a representante da editora já haviam feito os discursos da praxe, aos quais se seguiam momentos de leitura da obra acabada de nascer, pelos amigos da poetisa, também quase todos poetas e que tinham vindo de longe para o evento.

A quarta a exercer essa função, embora ainda nova e de aspecto maciço e vigoroso, ao contrário dos restantes realizou-a sentada, para isso tendo pedido uma cadeira, logo disposta por mãos solícitas junto à mesa de honra. Mais leituras houve, de outros, até que a tarefa lhe coube de novo. Sentiu ela então necessidade de justificar a estranha atitude, confessando que, nervosa por natureza, em ocasiões semelhantes ou deixava cair os óculos ou o livro ou quase tombava ela própria e que por isso se defendia de prováveis desgraças desta natureza, preferindo ler sentada.

Foi nesse momento que se ouviu fortíssimo estalo que ecoou estranhamente no silêncio da sala. Rachara-se o plástico da cadeira, que logo se desfez em pedaços, a leitora caiu de pernas para o tecto, os sapatos de salto alto voaram pelos ares e todos os que estavam nas filas da frente viram que a sua cinta era cor de salmão, que não depilava as pernas dos joelhos para cima e que tinha um buraco no calcanhar da meia esquerda.

3 comentários:

  1. Prosa também vale e estorietas deste calibre servem para (nos) equilibrar.
    Quando menino ouvia dizer no meu crioulo: "Seguro morreu de velho. Preferiu dormir numa esteira para não cair da cama".

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  2. Uma revelação interessante: a veia poética do Joaquim Saial, um companheiro nosso e de um outro poeta e prosador Adriano M Lima.
    Vou-me introduzir à poesia do Saial.

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  3. Um conto com a mais-valia de um desfecho inesperado e desconcertante. O diabo nem sempre está atrás da porta - provérbio que ressalta da leitura do conto e que assenta na perfeição à insegura e desventurada declamadora.
    Fica aberto o apetite para os outros contos.

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