segunda-feira, 24 de setembro de 2018

[0187] João Cabral de Melo Neto, o pós-modernismo brasileiro


Um dos grandes poetas pós-modernos de língua portuguesa, o pernambucano João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife em 1920 e faleceu no Rio de Janeiro em 1999. Diplomata, foi distinguido com o Prémio Camões de 1990, o Prémio Literário Internacional Neustadt de 1992 Prémio Jabuti de 1993 e o Prémio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana de 1994. Diplomata, a sua poesia (caracterizada por um rigoroso estático extremo) foi influenciada pelo surrealismo. Ao encontro do sensionismo, o poeta usa uma linguagem directa, recorrendo muitas vezes aos objectos de uso comum. Acusado de comunista, foi demitido do Ministério das Relações Exteriores em 1953 pela ditadura varguista, mas readmitido em 1954.


TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


IMITAÇÃO DAS ÁGUAS

De flanco sobre o lençol,
paisagem já tão marinha,
a uma onda deitada,
na praia, te parecias.
Uma onda que parava
ou melhor: que se continha;
que contivesse um momento
seu rumor de folhas líquidas.
Uma onda que parava
naquela hora precisa
em que a pálpebra da onda
cai sobre a própria pupila.
Uma onda que parava
ao dobrar-se, interrompida,
que imóvel se interrompesse
no alto de sua crista
e se fizesse montanha
(por horizontal e fixa),
mas que ao se fazer montanha
continuasse água ainda.
Uma onda que guardasse
na paria cama, finita,
a natureza sem fim
do mar de que participa,
e em sua imobilidade,
que precária se adivinha,
o dom de se derramar
que as águas faz femininas
mais o clima de águas fundas,
a intimidade sombria
e certo abraçar completo
que dos líquidos copias.


MORTE E VIDA SEVERINA

- O meu nome é Severino
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria, 
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso aina diz pouco:
há muitos na freguesia, 
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela, 
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nomes de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zavarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda e que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta. 
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até na gente não nascida). 
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

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