sexta-feira, 28 de agosto de 2020

[0712] Dos "Poemas Alemães" de Teresa Balté, republicamos hoje "Idílio berlinense"

Teresa Balté

Poema de 2008, publicado na revista "Colóquio/Letras" da Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, Portugal (n.º 179, Janeiro.2012, pp.145-147).


IDÍLIO BERLINENSE

1
Planear o dia à mesa do pequeno-almoço – um súbito cansaço de museus – o pátio torna-se arte, com relva húmida, flores autênticas, ávidos pardais – e a seguir, lá fora: Nolde, Kollwitz, Babilónia

2
Faz-se tarde, a flor murcha, a folhagem esmaece. Não me apresso nestes últimos tempos:  tudo em verde e rosa, em harmonia – muito discreta, muito consideradamente ergue-se a chávena e bebe-se

3
As ideias reúnem-se num puzzle – já não há fio condutor, uma lógica – está chão e aberto o labirinto – existiu alguma vez algum enigma? – só a lúdica mão do jardineiro insiste ainda e vai compondo outros canteiros com os mesmos elementos

4
Saudade?  sim, anseio pelo amor acontecido – também ele teve o seu tempo, a felicidade. Agora apenas sinto a chuva suave – única ternura nos cabelos, ombros, coxas – é ela agora que me empurra para baixo, para a terra tão macia – agarro em mim e fujo com as jovens que riem

5
Onde as paredes trazem as feridas das balas, pelas ruas de leste, correm desvairados os sonâmbulos – É aí que ainda me escrevo, para conseguir viver: a mão tremendo ao vento, o olhar tombando no regaço da mendiga russa – Onde florescem as tílias? onde ficámos nós? nós? Sozinho ninguém pode transpor a Ponte do Palácio, cavalgar através do Arco. Sozinho não se deve acordar

6
As graciosas lanças na mão dos tritões espicaçam os turistas apressados – para além, para além. Em volta os edifícios quadrados do poder, pedras de açúcar. Em cima os punhos das nuvens cerrando a trovoada, o céu falhado. – Respira-se em círculos na ilha. Como Sísifo tento construir o futuro enquanto a águia de Prometeu me dilacera o corpo – A eternidade esgota-se no mítico e no museológico – por agora, ainda – antes do grande final

7
Sim, não falemos de objectivos longínquos e gozemos o pálido sol na esplanada. – Dois cafés, por favor – perdão, um só. – O poema está rasgado, os farrapos pombas assustadas

Berlim - Pormenor escultórico da fonte Lebensalter (Idades da Vida), Wittembergplatz (Foto Joaquim Saial)

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