sábado, 25 de abril de 2020

[0707] Nicolau Saião volta à carga em Ibn Mucana com excepcionalíssimo poema de 1986


COMO O OUTRO QUE DIZ (ao Mário Cesariny)

I

O que os meus olhos seguem nesta vida
tem mais perversidade do que manha.
Não está sempre perdida
não é sequer estranha.
É um pescoço
rodando lentamente para o lado da sombra
para o lado da barca dos primos de Cacilda
franja por franja correndo o espaço morto
tão depressa coitados como se fossem de mota
ou sobre o rio
sem margens
sem o batuque doido extremamente caligráfico
da água interior
dos nomes.

E os cabelos   os cabelos do mundo
estão sobretudo aqui
nesta cadeira branca simulando o silencio
a quinhentos quilómetros a oeste do mar
equidistante   gélida   submissa
detendo-se de súbito na sua própria agonia
muito perto   demasiado perto
do jardim diurno dos réprobos cuja candura
acende
e se dissolve
se dissolve sem mágoa
uma e outra vez   e ainda uma outra vez
no colo amarelíssimo de Rosaíris.

Escuta   por favor
escuta
não os enganemos    nunca
A voz que me sopra junto ao tímpano
vem de muito longe    vem de muito longe
tão morta como viva
e em vez de dizer arcano diz madrugada
e em vez de dizer o mundo diz fogo-fátuo
virgem    montanha    almofada
diz os catorze nomes que é proibido ouvir
diz o dia e a hora de todos os demónios
e um corpo que se agita por baixo das arcadas
no Alentejo da Europa dos automóveis por dentro
buscando a clareira imprecisa dos cemitérios
em Sintra   na Ericeira   nas ruas de Lisboa
nos locais onde canta a raparigataúde
imersa em claridade
em cuspo
em chuva.

No entanto, no entanto
é preciso sim senhor desesperar
digam lá por favor que é preciso
andar de novo ao longo da estrada de tijolo
adormecer cantando nos túneis    que maçada
e defecar do alto duma árvore
para cima da moleira de Adonai
depois olhar as estrelas que surgem dessa vasa
e recuar para o sítio onde o barco dissimula
a sua rama suja do Oceano
esperando a tardinha   o vento morno
a negra Primavera e o rei do bosque maldito
com barbas adejando como um estandarte louco
no seu retrato igual ao rosto do emparedado
na selva da distancia
que ninguém
nem mesmo nós
conhecemos.


II

Todavia o homem-mosca bate que bate
a a mulher-gafanhoto sopra que sopra
e o senhor-fantasma rema que rema
entraram já na casa inconquistável
e nada deixaram de pé
e eis que de repente há alguém que se interrompe
perto do braço-bandeira a oriente da aurora
e tudo fica escuro, serenamente
como colunas raras de cimento
na cauda sexual do elefante por fora
cujas presas bem limpas desfizeram o dia
levemente atmosférico
sobre a areia do universo   no país onde o choro
é só até ao estômago
e alguém espera   tremendo   que o fresco sangue de Alceste
o outro sangue
seja a calamidade e a angústia
que não vão de avião para nenhum deserto
nenhum glaciar horrificado
nenhuma cama especiosa nenhum comboio sem lágrimas
nenhuma taberna de Alcântara onde o sarro dos anos
se descobre no salto da pantera
que galga o passeio de azeitona na boca
de axilas escurecidas
cujo suor excessivamente espesso
é bem o resultado fiel do habitante da cubata
com um diamante escondido numa ferida
o filho infiel da oração dos marinheiros de outrora
a rua do mundo que desemboca numa laje circular
em frente do lago pútrido
aguardando sem minutos desaproveitados
os que gemem  os que se cobrem de negrume
os que nada querem imenso
e só sabem sonhar em termos de ave ou de horizonte
de rato semimorto encontrado num jardim
de árvore
de meio-homem de Epaminondas os sustos
duma Lisboa sem língua
de janela de um país efémero
de constelação trepa que trepa, enfim
de mancebo de pouco futuro desaparecido
de todos os barulhos da Terra.

Mas convém, ó meus amigos de infinito
que tudo seja aquilo que sabemos
e fazemos
o perfil ardente sorvendo o rio trovejante do mundo
a garganta trémula dos lobos ao longo dos carris
sob os tectos
da cidade repleta de ferrugem
e cal tocando o horizonte
ferido como o braço rasgado arrastando sangrentos
embrulhos para a campina solitária
para a babugem da praia na linha de água do mar
onde os peixes ficaram nessas pedras nesses recantos
tão conhecidos por Ahab, o capitão louco
e o seu tubarão vermelho.

Entretanto o poeta cabisbaixo os bantus e as aves
lá vão ao longo das avenidas
nesses táxis que usávamos sob um trémulo firmamento
na Praça do Intendente onde numa noite de repente
as palavras mais simples se velaram nos nossos lábios
como os de Bulgakov, como se fossem de Margarita.

E uma luz assombrada
abominável     aos solavancos
crescia em todos os pontos cardeais
em todas as coisas que se divisavam
ao vicejar da treva
entre os degraus dum largo sem nome e sem lugar
na mão tremeluzente, na chave de novo achada
para trespassar todos os símbolos
quando o homem de cinzento erguia no seu chapéu
entontecido e prestes a partir
uma agonia lírica, clássica, regionalista

para todos os rostos destroçados.


NICOLAU SAIÃO
[na folha volante de Agosto.1986 do “Bureau Surrealista Lisboa Alentejo” de MC/ns]


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