quarta-feira, 18 de março de 2020

[0699] Poema de José Luiz Tavares, em período de cerco

Foto Nuno Portela
José Luiz Tavares nasceu a 10 de junho 1967, no Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde. Estudou literatura e filosofia em Portugal, onde vive. Entre 2003 e 2020 publicou catorze livros espalhados por Portugal, Brasil, Cabo Verde, Moçambique e Colômbia. Recebeu uma dezena de prémios atribuídos em Cabo Verde, Brasil, Portugal e Espanha. Não aceitou nenhuma medalha ou comenda, até agora. Traduziu Camões e Pessoa para a língua cabo-verdiana. Está traduzido para inglês, castelhano, francês, alemão, mandarim, neerlandês, italiano, catalão, russo, galês, finlandês e letão. Sobrevive ao tempo do mundo sem estar conectado a nenhuma rede social.


FINDA
[Litania em tempos de coronavírus]

Depois, sim, que agora
estamos vivos.
Depois — quando o espirro
expirar.
Depois — quando tiveres
pó na goela.
Não agora — que agora
estamos vivos.

Antes, sim, com os braços
portentosos.
Antes - sim – de a fraqueza
noivar com eles. Depois, sim,
porque há ar no ar
e a despedida é sem desculpa
e sem tristeza.

Antes não, que te falta
o assobio e a trela,
e a cara é sem rugas,
e a morte concorda contigo,
e tudo é mão de amigo
mesmo se te espreita
o tempo inimigo.

Depois sim, que estar vivo
é cedo encarquilhar-se;
não, não agora, porque estás
no impenetrável interior,
e desconheces o limite ulterior,
e não sabes pedir por favor
o socorro amplamente publicitado.

Agora sim,
que é antes de toda a dor,
                         ainda no corpo tens cor,
                         e sobe-te  à boca
                         centos de sabores.

Mas ainda não ao grande sim,
porque maravilha-te estar aqui
(só mais um instantinho),
embora penses na mão da eternidade
ou como é doce o despenhamento.

Antes não
— porque há a verdade
que desconheces,
e porque realmente não sabes
tudo desejas devotamente.

Não ainda — que os teus ossos
não sabem a alcatrão,
nem depois — que o esqueleto
é pertença do patrão.

Não depois,
mas agora sim,
porque tens fogo nas ventas,
mascas pó e polenta,
e o tempo inimigo te diz
que tudo se há de compor.

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