terça-feira, 16 de julho de 2019

[0677] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (30) Nuno Rebocho, a constante viagem

 

Porque é terça-feira, recordamos um poema de Nuno Rebocho, extraído de “Canções Peripatéticas”.


NOITES ANDALUZAS

1. 
vai a morte calçada de trinta pés
e cerzida no choro das viúvas -
ela vai a molhar-se mais de chuvas
que de cruzes ou de incensos ou de fés.

como um clamor sobre um soluço de clarinetes
a morte destapa-se do suor dos cansaços
com que a transporta a raiva de trinta braços
com que a desejam na batalha mil ginetes.

vai a morte. lá vai lenta e roxa
ondulada e lenta quase coxa.
atrás vem a voz e vem a virgem
e um coro branco: a cor da origem.

passo a passo o lamento alcança
a semente que desperta em regaço verde:
é o senhor da morte que caminha e balança
sobre pés sem limites a própria sede.


2.
abandonaste a morte entre as oliveiras
onde os grãos da primavera humedeciam:
as culpas zelavam e pariam solteiras
com as dores amarelas que os olhos escureciam.

em cada etapa a vida era vinho novo,
goles de alegria que as gargantas assolavam.
na vida todas as mortes todas se apagavam
e trôpegas de tão fartas envileciam.

e as bocas? as brasas cantavam e despertavam
em ocos murmúrios de grossos rios
que nas ruas com traves de silêncios se barricavam
dos assaltos das paixões nos olhos claros;

morria então a morte em tanto vício e canto
que o baile adormecia. que já era vida a morte
e era sal o sol com rouco espanto
da noite que no dia mergulhava e esmorecia


3.
(o jardim dos perfumes)

atiro o problema para trás das costas
mas as macieiras descobrem-me: sou a sombra
e o murmúrio. e se calço as alpergatas do silêncio
sobra-me o espanto. por então falo
das coisas corriqueiras que me acontecem
- ou o tépido beijo da morte
a limpidez das madrugadas sóbrias
os olhos dos planetas que escurecem
ou a morte súbita dos rios amarelos.


4.
corria o cometa na noite de andaluzia e era febre
enquanto o tempo se consumia no sofrimento da memória.
a noite e o plaino era a parede de fechar o mundo
à angústia do corpo vivido. o caminho encurta
quando agarramos a felicidade com desconfiança
(e devemos confiar ou morder a língua?).
o cometa era indiferente à noite de andaluzia
e eu queria falar-lhe dos campos secos
do sangue das batalhas de outrora
do corpo desgastado pelas palavras da ausência
mas o cometa era luz e corria - corria para lá dos olhos
na noite de andaluzia.
desde então eu quis casar
com a filha do rei
e desde então fiquei à espera
que entrasses na minha casa
e me dissesses a palavra mágica
para que a minha alma fosse salva.
desde então eu estou à espera
que me digas aquela palavra mágica.

1 comentário:

  1. Um poema belo... muito belo... não precisas mais de encontrar a palavra mágica. Ela está neste poema

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