terça-feira, 23 de abril de 2019

[0637] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (25) Nuno Rebocho, o inquiridor


Rebocho perscruta-se sem remorso, num constante mergulhar na sua intimidade, sem desculpas se desnuda, expondo-se com insistência. È exemplo este poema de “Canto Finissecular”


O CADÁVER ADIADO

tarde de sexta-feira: aberto vinte e quatro horas, como quem mastiga rusticidades, com o mundo da moda esquecido na rua dos possíveis. convido-te. vamos construir.

Há um som de trompete aqui perto e
as escalas funcionam a partir do dó. O
trompete (o som) salta para a rua desde
uma janela na berma de uma casa. Está
lá dentro: é suposto. O som inaugura-se
a quem passa dentro dos ouvidos: adivinho
do lado íntimo da parede o objecto trompete
e adivinho mãos e lábios, isto é, o prenúncio
de um corpo. O som é a pegada do invisível
e o trompete o seu pretexto.

Assim se constroem as coisas com as mãos dos ouvidos.

A casa é o bolor da atenção. Dentro da casa
escolhemos os sabores e o teatro
faz-se de ressonâncias. Aqui me dispo. Um
pardal seduz-me desde a rua na berma
da janela. É um som que marca a presença
do exterior e bole com a intimidade alcançada
e impede de dar ouvidos ao que o sangue diz.

As paredes definem o espaço e limitam o eu:
estou na piscina dos meus pensamentos.

Assim se constroem as coisas com as mãos dos olhos.

Portanto escrevo. Cada caracter tem o carácter
dos sons e agarra os átomos da sensação: o murex
desenha-se a partir do manto e logo se expõe. Fibra
a fibra a carne desmancha-se sobre o papel
e os ossos aceitam-lhe a forma e logo a linfa
adeja como um sopro. A atenção dispersa-se
no labirinto e só as letras inauguram
o acontecimento de escrever.

Assim se constroem as coisas com as mãos das mãos.

          Meu caro: perguntas o que é a arte e tens medo
  do vento quente. Se a vida é o diverso e
  o contrário, porque limitas o acontecimento?
  Vive e não te escandalizes: se uma pedra
  cair de baixo para cima, acontece porque pode
  e não te mandes ao mar se alguma vez.
  Vai ao mar se queres, não te justifiques: o mar
  não precisa das tuas razões.

manhã de sábado: um anjo do senhor anuncia que o nevoeiro se dissolve e posso aligeirar as pernas pelas alamedas da alegria. não importa que os castanheiros se despejem das folhas. a manhã há-de clarear pela vontade dos olhos e o sol denuncia-te em parte incerta. convido-te. vamos destruir.

Há um som de um cão aqui perto e
a paisagem assusta-se. O canídeo é o trânsito
único na única rua de eu estar sentado a ouvir. Surge
depois a mentira de um canto de canário. Subversivo
o trinado que não respeita a gaiola e incomoda
o ladrar do cão que assusta a rua. Sentado a ouvir
sou cúmplice do canto que sai da gaiola e do
canário. E sou cúmplice do canídeo. O outro lado
das ausências (o da intimidade) mora
na explicação dos sons.

Assim se destroem as coisas com as mãos dos ouvidos.

A casa é de onde se parte. Está fora da estrada. Está
fora de onde os sons vêm e não se vêem. A casa impede
a visibilidade e por isso se diz que é opaca e por isso
me dispo para lobrigar o interior de mim mesmo. E me
refastelo. São horas de aparições e aborreço-me
que outras danças apaguem o horror
de esgrimir as sombras. Aborreço-me porque quero
ser exacto. Sobretudo aborreço-me dos porquês quando
descubro que as paredes são a pele da minha ausência.

Assim se destroem as coisas com as mãos da pele.

Portanto escrevo. As palavras são o vício
e substituem o sofrimento: dizemos o receio sem vírgulas
e atascamos onde as palavras implodem as lamas
do esquecimento. Escorregamos até ao aconchego
das imperícias para nos rasgarmos - esse é o prazer
das carícias. Nunca as mãos libertam
já que são elas que constroem as redomas: temos
o nojo da liberdade e escrevemos para ser exactos.
E dizemos.

Assim se destroem as coisas com as mãos da boca.

Meu caro: se não gostas de me
ler, não discutas. A minha eternidade
dispensa-te. Fecha o livro que te amarga
e escolhe outro pois essa é a tua razão.
As palavras minhas não se obrigam
a deleitar-te. Preferem adormecer no tempo
até que alguém algures num outro calendário
as maneje num monstruário de curiosidades.
Saberei nesse tempo da minha eternidade.

tarde de sábado: de súbito o trovão destrói a ilusão de quietude. as ameaças arrastam os pés com o reumático das descobertas e alinham-se para o golpe dos cheiros inacabados como as formigas teimam no transporte dos restos. convido-te. vamos reconstruir.

Há um cheiro de quem chega ao limite e a casa
esfarela-se enquanto o telefone toca.
Uma palavra inscreve-se
no tutano da tarde: ansiedade. Mas nada de perguntas.
Graças a deus protegemo-nos porque não temos
a ubiquidade e conservamos os porquês na algibeira
das retóricas. Está decidido: limpo a casa. O aspirador
desfaz o pó do meu estar. O detergente apaga-me as
pegadas. Quando me separo dos aromas as superfícies
brilham sem as manchas do meu convívio.

Assim se reconstroem as coisas com as mãos dos hábitos.

E há um quadro que é uma cana de pesca. E
há um copo que é uma guilhotina.
E há um sapato desbraguilhado.
E há uma cadeira que é uma roda. E a capa de um livro. E
um candeeiro sem olhos: o que as coisas podem ser
despidas do outro lado enquanto me visto de conveniências.
E me revisto de sorrisos que outrem atraem
ao mel das circunstâncias. Estamos encadernados
nas prateleiras do dia a dia dos outros.

Assim se reconstroem as coisas com as mãos das normas.

Por isso digo e escrevo: porque me defendo. O rabo de
um porquê salta do esconso da imensidão
e fere o totalitarismo das companhias. Aqui não há
desculpas: há que ser assim. O templo está alugado
à hora para o deus que primeiro chegar
ao espaço que sobeja. Depois amanhamo-nos
de preces necessárias e de beatitudes
escolhidas no prontuário das felicidades. Amanhã
é outro dia e estaremos prontos para a sequência.

Assim reconstruímos as coisas com as mãos do zelo.

Meu caro: não retenhas as urinas à higiene
da solidão. Deixa-te envolver como as árvores
obedecem ao curso das estações. Desiste do
convencimento das tuas lágrimas que pesam
como chumbo e resguarda-te e sobrevive. Hão
de transcorrer os dias sobre os edemas e tu
serás flor. Outra vez flor com a morte aquecida

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