sexta-feira, 29 de março de 2019

[0612] Cafés e café, em memorial de Nicolau Saião, homem da casa, neste blogue, também café de grandes convívios

Jean Paul Sartre no Café de Flore, Paris
OS CAFÉS

“Um Café é o lugar onde podemos arruinar-nos, 
enlouquecer ou cometer um crime” – Vincent van Gogh

“Um Café tanto é um continente perdido 
como um lar encontrado” – Lord Alfred Jelly

Eles são territórios de solene aventura
com seus nomes diversos e pacatos
com seus nomes soberanos de antiga submissão:
Cafés do nosso mundo interior e exterior
a lembrar-nos o tempo, a liminar memória
tão conhecida e próxima, nocturna e singular.

- o Café onde um dia contemplámos o cerne
de que nos construimos: os Cafés da cidade
toada familiar
a que não se resiste
e por vezes nos muda a rima cá por dentro
setentrional como um cântico sob o luar de Fevereiro
seja só para a bica ou para maiores rumos
da primordial viagem:
o Facha e o Central, peculiares estações
onde li quer as opacas ordenações perfeitas
de Maurice Scève, Bulgakov, Antonin Artaud
quer a fulgurante linha de terra criada
por René Char e Nerval
- ainda não existia nessa altura a incisão deste silêncio –
pelas tardes de Verão, com amigos à mesa

(o Donato Faria, acompanhado
pelo Par Lagerkvist por dentro da cabeça
ou o Drago longilíneo que depois deu em romancista
ou ainda o Arnaldo, que tinha um pai polícia
o que é sempre matéria para odes
próprias ou alheias)
prolongados em conversas donde surgiam segredos
anos e anos depois
inteiramente sentidos.  Cafés
como o Alentejano, substância de possibilidades metamórficas
e por isso tendo a ver com os proverbiais sete pontos
de orientação europeia
ou o Tarro das elegâncias funéreas
de magistrados, professores, lojistas finos
ou ainda o Luso, onde se viam geralmente o pernalta
e o seu irmão contabilista
o rico ou o obliquamente pobretana, o estudante e o doutor
e outros
negociantes dos arredores da existência e demais vilas.

Quantas vezes
na orla insubmissa das noites comigo mesmo
foi neles que senti, olhando os rostos em torno
o faiscar repentino das descobertas diárias
que a seguir se dispersam e vão por todo o lado
como redondas andanças dum sentir universal
e portanto bem nosso.  As manhãs

repousadas, um contínuo pulsar
de entradas e saídas
porque sempre a tal nos ligam alegrias e tristezas
se adolescentes somos ou já adultos olhamos
os retratos do passado e o barulho do futuro.

Os meus Cafés existem muito para além de mim
nesta terra, naquela e naqueloutra ainda
- Cafés de Portalegre, um Café de Madrid
onde li as palavras que Bergamín escreveu
a traços largos numa parede, entre desenhos
de companheiros já idos ou simplesmente fuzilados,
o Café de Leiria (como se chamava a menina dos petiscos…?)
que tantas vezes acolheu com bondade comercial
a minha estranheza de militar por acaso
lá na mesa do fundo, com muitos anos a vir
e a abalarem p’ra diferentes latitudes
ao recordar com afecto as refeições a crédito
do fraternal patrão e as viagens p’ra casa.
Um Café de madrugada, sito em Ciudad Real
onde fomos comer churros, acompanhados
por canecões de chocolate a escaldar, mas mais propício
que um discurso de alcalde ou señoria. Um Café
rumorejante de Paris
onde tentei encontrar resíduos de poetas báquicos e resistentes
e em troca – we never know – quase fui engatado por uma londrina
que certamente nunca estivera na Rua da Junqueira
onde habita a última imagem de Café que frequentei
antes de passar à peluda.

Cafés, entidades secretas de tessitura incessante
em vós se pode
sentir o amor passar numa figura desfocada
entre outras coisas que passam, cintilam e logo após
se dissolvem entre ruas calcorreadas e planetas
ano atrás de ano divisados
- um de cada lado da mesa, construindo
o imenso mistério que em nós pode habitar
e trocamos como um eco enquanto mastigamos
às vezes com manteiga, às vezes com mostarda

as lembranças da vida e as sandes de fiambre.

                                                                                   ns
                                                                      in “Escrita e o seu contrário”

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