quinta-feira, 7 de março de 2019

[0602] Miguel Rego, mareante de vontades


Nascido em Lisboa em 1963, ex-jornalista, historiador, arqueólogo, escritor e poeta, integrou a equipa do Campo Arqueológico de Mértola, foi consultor das Câmaras Municipais de Barrancos e de Castro Verde, coordenador da Fundação Serrão Martins.


LAMPEDUSA

Lampedusa, abismo da noite, penedo inerte da
madrugada crua que não dorme… Chamas-me pária,
emigrante, migrado, negro, preto, coisa, porque me
navego cambaleante no mar azul de gelo e sal, de
noite e fome, de espanto e medo. Tu meio deitada,
meio sentada, no lectus de mármore e prata, de
 esmeraldas e granadas, onde comes e vomitas e
vociferas e adormeces para acordar lívida no dia
seguinte e na mesma posição. O que evocas com o
meu nome pouco me importa… Eu apenas procuro
a manhã clara e eterna da palavra liberdade, levado
nas asas do mais simples desejo que trago na mão da
infância e que encerro com toda a força que tenho:

acordar, abrir a janela e deixar o sol apagar a
penumbra terna daqueles que amo!

Tu, só me ofereces ausência.


NAUFRÁGIO

As águas separam-se onde mergulho, naufrágio
ardente, na procura de uma constelação que me
esconda na noite.

E aqui fico, e aqui perduro, como calcário talhado na
praça em pleno fulgor do dia.

À minha volta olhos, bocas, braços, figuras mágicas,
títeres que bracejam no flanco das palavras
procurando o sim e o não esgueirando-se entre o riso
e o choro, vomitando o odor dos corpos na flor da
matinada, o escopro rasgando na rocha o tempo
onde todos os homens regressam.

E nos passos de lava onde respiro o aroma da brisa
salgada, só cai a indiferença, como silencioso rugido
vertido por animais selvagens.


ESPERANÇA

Quando abrires os olhos e sentires a tarde a morrer na
boca estia, olha as pedras que preenchem a
espaços os teus passos e atropelam o teu caminhar
titubeante. Repara que para lá das asas do medo
frémito desse andar esmagado contra um muro
surdo, há dois braços acenando com um lemço
arrancado à garganta nua e rouca, aos cabelos
enlouquecidos nas areias incendiadas de uma
qualquer praia ignorada.

Invade então a noite com uma orquídea branca na
mão e baila, baila, baila, inebriante, nos labirínticos
cabelos de uma mulher.

Verás que o entardecer é o princípio da noite
inacabada.

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