sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

[0577] Nuno Júdice, poesia nascida das palavras


De seu nome completo Nuno Manuel Gonçalves Júdice Glória, nasceu em Meixoeira Grande, Portimão, em 1949. Professor universitário, ensaísta, dramaturgo, escritor, tradutor e poeta. Ex Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Paris, onde também dirigiu a delegação do Instituto Camões, foi director da revista “Tabacaria”, editada pela Casa Fernando Pessoa, e dirige a revista da Fundação Calouste Gulbenkian “Colóquio-Letras”. Obteve o Prémio de Poesia Pablo Neruda, o Prémio do Pen Club de 1985, o Prémio D. Dinis da Fundação Mateus de 1990 e da Associação Portuguesa de Escritores de 1994, o Prémio de Poesia Ana Hatherly, em 2003, o Grande Prémio de Literatura de 2007; o Prémio Internacional de poesia Argana, em Marrocos (2014), o Prémio de poesía Poetas del Mundo Latino Victor Sandoval no México, também em 2014, o Prémio Literário António Gedeão em 2016, e o Prémio Internacional de Poesia Camaiore, em Itália,  em 2017.


RECEITA PARA FAZER O AZUL

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.


NUNCA SÃO AS COISAS MAIS SIMPLES

Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios.


A ROSA COM SEDE

Sedenta a chuva, a rosa caída esperava
que a regasse naquela tarde em que
o calor abrasava a terra. Ergui-a e,
enquanto as suas pétalas s abriam

para que a água escorresse por entre
elas, passei a mão pelo caule sem
espinho, suave como a pele da mulher
amada, até chegar à flor que me

revelava a sua cor. Assim, a tarde
passou, e a rosa já saciada ergueu-se
do seu lençol de folhas, renascida

no seu canteiro como corpo que desperta
para a vida, e ofereceu-me o seu rubro
botão, húmido dessa tarde de verão.

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