sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

[0564] Paulo José Miranda e a poesia surpreendente



Nasceu em Aldeia de Paio Pires em 1965. Escritor e poeta, Prémio Teixeira de Pascoaes em 1997 e Prémio SPA em 2014.


EXERCÍCIO 32

e um dia despertamos
há um inferno crescendo do estômago até à boca
as crianças gritam nas ruas
perseguindo uma bola e um sol pobre
que transforma as botas em vassoura

arrasta-se por todo o quarto uma dificuldade em respirar
os pássaros cantam
indo e vindo dos ninhos na varanda
e o homem procura uma janela dentro do seu corpo
abre uma parede
um pequeno corte na garganta

não há nem uma noite em que não adormeça com medo
não teme a morte senão ao despertar

arrastar uma enfermidade é alimentar um império


POEMA

Lembra a primeira noite do mundo
Aquela em que te abandonaram no escuro
Sequer a chama de uma vela
Para iluminar as coisas e o limite imposto
Não esqueças por favor a primeira noite do mundo
Não se saber nada e um choro profundo


SEM TÍTULO

Experimenta escrever uma linha
E depois dessa uma outra abaixo da primeira
Escreve ainda mais uma por debaixo da segunda já traçada
Com esforço faz agora a linha quatro ser maior do que qualquer das três primeiras
Continua a escrever sem parar nunca
Linha após linha após linha após linha
Até que te percas do número correspondente às linhas já traçadas
E não consigas sequer escrever nem mais um ponto
Depois de fazeres tudo isto
E talvez muito surpreendentemente
Podes ver que não acontece nada

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