quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

[0472] Álvaro Feijó, a força neo-realista


Álvaro de Castro e Sousa Correia Feijó nasceu em Viana do Castelo em 1916 e faleceu em Coimbra em 1941. Poeta, foi um dos vultos do neo-realismo português.


NAU PERDIDA

Pobre, lá vai! Que rombo no costado!
Como a água a peneta aos borbotões!
Açoita-a, em fúria, o Mar. Adorna ao lado.
Anda à mercê das vagas, dos tufões!
Mas segue, segue em frente. O vento a ajuda!
Galga nas ondas, que doidinha, olhai!...
Julga-se, ainda, a nau que dantes era,
por levar, no porão, uma quimera,
por ir, do vento na refrega aguda,
ovante e sem saber par’onde vai!

Julga-se, ainda, a nau que dantes era…
- o que passa não torna…
Na pobre nau perdida
a água entra e adorna.
Vai sendo, aos poucos, pelo mar sorvida.

Na agonia estrebucha. Num desejo
de vida e luz, arfante, desesperada,
busca furtar-se ao comprimento beijo
do Mar que a envolve. – Após, é o Mar e nada…
Doirado como um astro,
haste esquecida em campo onde as mondas
colheram tudo, o topo do seu mastro
fica esperando ainda sobre as ondas.

Na rota pelo mundo
- ao deus-dará na vaga azul e infinda -
nós vamos – nau perdida em Mar profundo –
joguetes do tufão;
mas conservando, ainda,
na última Esperança a última Ilusão.


SONETO DE AMOR DA HORA TRISTE

Quando eu morrer – e hei-de morrer primeiro
do que tu – não deixes fechar-me os olhos
meu Amor. Continua a espelhar-te nos meus olhos
e ver-te-ás de corpo inteiro

como quando sorrias no meu colo.
E, ao veres que tenho toda a tua imagem
dentro de mim, se, então, tiveres coragem
fecha-me os olhos com um beijo.
                                                          Eu, Marco Pólo,

farei a nebulosa travessia
e o rastro da minha barca
segui-lo-ás em pensamento. Abarca

nele o mar inteiro, o porto, a ria…
E, se me vires chegar ao cais dos céus,
ver-me-ás, debruçado sobre as ondas, para dizer-te adeus.


VARINA

Eu mudei de pincel e de paleta
- embora seja a mesma tinta com que escrevo –
mas mudei, que, de repente,
surgiste diante de mim.
Não é que me perturbes, mas eu sinto
que alguma coisa me comove ao ver-te.
Não é que te examine, porque sei
que me é quase impossível,
que me é mesmo impossível descrever-te.
A tua história, sim? A história que se repete
e é sempre nova porque há sempre gente
que nunca a ouviu
ou que não a quis ouvir.
O cais viu-te nascer!
Corrias, loucamente, pelas retas
intermináveis dos paredões
de cimento e granito,
e em caixotes com cheiro de sardinha
fazias tabogan das linguetas
- o tabogan dos parques infantis
que não pudeste ver.
Assim, faminta e seminua
mas livre como os peixes
fizeste-te mulher!
Depois foi o correr das ruas da cidade,
enrouquecendo a gritar:
- “Quem merca os camarões”…
Depois um que voltou da Terra Nova
e te olhou como fera sequiosa
de carne.
quando o lugre, ao chegar, entrou na doca.
Depois o inevitável!
O luar…
A Senhora d’Agonia…
A quentura de Agosto…
E, então,
não era só o peso da canastra,
era o peso dum filho
e a fome de dois para matar,
até que o lugre voltasse
e se esquecesse
o calvário da luta…
Um dia no intervalo da campanha
o sexo falou mais alto
e o coração calou.
Foste dum outro homem e, depois,
de dois,
de três.
Quando ele voltou
encontrou-te perdida
e tu perdeste-o.
Hoje, num outro porto, ainda gritas
o teu pregão.
Quando um homem te encontra fora de horas,
para ele foi sempre um bom encontro…
e… “até mais ver”…
Vês! Eu sei a tua história…
(Há tantos que a não sabem!)
E, no entanto.
dum homem só ou de cem,
num porto do meu país ou num porto de Islândia,
tu surgiste aos meus olhos
como a mesma mulher.

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