terça-feira, 20 de novembro de 2018

[0431] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (7) Nuno Rebocho, dedicatórias familiares


A RAPARIGA DO SHOPPING

                                        À minha filha Susana

No grande espaço das coisas arrumadas para todos
se arrumarem dentro
recusam-se margarinas no expositor dos açúcares:
cada peça catalogada com ficha de entrada,
o registo do movimento e câmaras de vídeo
que vigiam quem lá vai e o que faz,
cada acto, cada gesto vigiado, o pacote liofilizado,
o pescado higienizado. Cada coisa seu peso e sua medida.
E tudo exposto:
da diskette às azeitonas,
verdes, a louça, a roupa,
sapatos para pés chatos,
livros a granel, pensos higiénicos,
plantas, artigos de pesca, lâminas de barbear
    no balcão das informações: loucura tem? só em pacotes.
No congelador, ao lado da ternura e com selo de garantia,
de marcas diferentes e em tamanhos diversos
(meia dose, individual e familiar). Mas recomendado:
utilize com moderação – o governo
informa que a loucura prejudica a saúde.

na prateleira do destino recolhem-se pernas de deslembrar
caminhos do destino que alguém toca
para confirmar consistências entre frutas
de dimensão normalizada e verdes de legumes
antípodas. Qual a mão que afere
o rigor? Não fumar, não mexer,
a registadora tem olhos de multidão
se passam os carrinhos sobre rodas.

CAIXA UM    até sete compras,
coisas de ocasião pagas a crédito,
com cartão de regular a bolsa ou o mês?
a vida então.

CAIXA DOIS    a fila imensa,
cansados os pés entre o azeite e a conversa
o linguado, o bife e os pacotes de café,
as latas de cerveja para patuscadas de marés
(está quieta inês)     alerta o guarda
esqueceu alguma coisa? e consulta a lista
- a registadora nada esquece
e o código de barras molda o lucro da casa,
a medida do mês de cada um, a regra do salário,
o ritmo da vida, a cauda das esperanças,
o rol da lembrança, o mar dos desejos,
o tempo das promessas, o ter mais barriga que bolsos,
de ter mais bolsos  que tempo,
de ter mais tempo que medida
(está quieta inês        inês desanda inês grita
inês é criança no meio das coisas,
no meio das prateleiras das coisas,
no meio das regras das coisas
nomeio das coisas das coisas
- inês desanda, desanda)

Está escrito: proibido o acesso a pessoas estranhas ao serviço. O outro lado é o outro lado, o do infinito, onde nada se acaba, onde tudo se esgota: onde o segredo repleta o que se esvazia: onde está o serviço: onde a nascente descobre o rio que sempre corre: onde p sémen reviaja ao recomeço: onde o alcatruz se desnuda para o horizontal: onde a boca tem mais barriga que olhos: onde o saco roto nunca esmorece: onde o depósito aguarda reproduzir-se: onde o fim sempre se renova: onde depois do fim vem outro fim. Sempre a pensar em si.

A ambiguidade é exterior aos bíceps como os ratos:
    aqui se vendem livros
(poemas feitos no espaço do não fazer: ah, deyesto a ambiguidade,
a realidade reescreve-se com os objectos,
a paprika dos sons, o cravinho da cor, o caril das vozes,
a moscada dos gestos, o tomilho das dores,
a pimenta das alegrias, o pimentão das sombras,
o cominho dos sons, o sal da cor, os orégãos das vozes,
o colorau dos gestos, o alho as dores, o cebolinho das alegrias,
o piripiri das sombras.
(A realidade reescreve-se com a realidade,
com os fragmentos da realidade
que são as letras, as vírgulas, os pontos, os sinais.
A ambiguidade está fora,
está no lado interdito às pessoas estranhas
ao serviço. Ficamos do lado de sora da realidade
com a morte na alma,
com a morte que não cabe na algibeira.
Eu sei – a realidade é ambígua,
não cabe na algibeira, nem na morte nem na alma.
Eu sei – a ambiguidade é real,
não cabe na alma, nem na algibeira bem na morte).

Eis senão quando a cachopa de minissaia calçou os patins e veio ao encontro: estamos em promoção – damos desconto, três embalagens pelo preço de uma. Loucura reciclável, vegetal, sem químicas, ecologicamente puré. Com prazo de validade e certificado de garantia. Se não gostar, devolve. Pelo preço de uma leva três.

No complemento da minissaia as pernas eram morenas.
À saída sorteavam dez automóveis.
No grande espaço das coisas arrumadas todos se arrumavam dentro.

(de “A arte de matar”)


CHORO DE DAVID POR SEU FILHO ABSALÃO

                                        Para meu filho Ernesto

Logo que ouvirdes o som das trombetas sabereis: absalão
já não mora aqui. Ergueu pendão na montanha
e é rei da sua tribo. Absalão ergueu a mão a sal pai
e na quentura do sangue cumpriu a lai da manada
- que o macho jovem derrube
o velho, que o novo se sobreponha.
Assim fizeram a lei. Cumpra-se. E que o rei velho se defenda,
a si e ao palácio, e defenda o seu exército
quando a trombeta soar. E trema porque
chegou a hora de o seu filho
lhe arrebatar coros e vida.
“Meu filho Absalão”, o rei chora.

Logo que ouvirdes a trombeta perguntareis: de que cidade
és  tu? E tu serás a cidade da revolta.
E subirás à montanha para brandir contra teu pai
o  mando da novidade. E o rei há de chorar o luto
dos elos que se perdem. E tu dirás:
“velho, a tribo te recusa. Tremem-te as mãos.“
A corte dos jovens insensata-te. A nova tribo está pronta
para o combate. Sabemos as armas e sabemos
o sangue e sabemos as feridas,
mesmo que não conheças as lágrimas
que são salitre no interior
das armaduras ou o fel que as oleiam.

Logo que ouvirdes a trombeta direis: “ está triste o rei”.
A ronha da velhice defende-o mais 
que o manto da dignidade. Tremem-lhe as mãos
quando a batalha se estende no território,
pois que ama os que deiam e odeia
os que o amam. “Absalão, meu filho:
as rupturas são legítimas, Dei-te o gibão e o gládio,
dei-te o pão e o ressentimento.
Traí-me porque cresceste e, crescendo,
tiveste fome do teu momento.
Absalão, meu filho Absalão,
dei-te o gibão e o gládio”. O combate é preciso

para que a tribo saiba da destreza.
Para que a tribo velha se deslastre.
E logo que ouvirdes a trombeta, vireis à tenda do rei.
E trareis as armas
e trareis a audácia da sobrevivência:
nós, os velhos, lutaremos para que
não soçobre a velhice. Lutaremos
contra os filhos como lutámos
contra os pais. Este é o terreiro que construímos
e esta a virtude que conquistámos,
ó guerreiros do tempo. Ou morramos
com honra sob o gládio dos descendentes.
Eis porque chora o rei.

Logo que ouvirdes a trombeta sabereis que os campos
estão dispostos: grupo contra grupo,
tempo contra tempo. Iremos trôpegos
ao âmago da batalha, de rastos ou mancos,
cegos ou feridos, surdos ou meigos.
Combateremos. E david dirá aos seus:
“poupem absalão, poupem absalão”.
Todavia os ramos dos carvalhos
Desconhecem os enredos e as zagaias
cumprem o seu caminho. Chorou david
a morte de absalão e choraria
a vitória de seu filho.
E o rei fugiu da sua mágoa

e encheu de confusão as suas gentes.
E encheu de luto a sua plebe. Porque
dizia david: “tu foste o meu osso e foste
a minha carne. Foste o mar
para lá do mar que maus olhos viram.
Cumprem-se as gerações e sagram-se
as revoltas. Absalão meu filho.”
Logo que as trombetas soaram, david
falou ao coração dos que o seguiam;
“quem ergue a mão contra quem? a lei
do mais forte é a lei das tribos.
Choro porque venci e a lei me derrotou”.

Esta é a história de quando o rei chorou

(de “ A arte de matar”)

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