Nascido em Santa Catarina (Caldas da Rainha) em 1951, José do Carmo Francisco - bancário, jornalista, poeta e escritor - foi Prémio Revelação da APE de 1980 e dirigente da Associação Portuguesa de Escritores
ISTMO
Em Sarilhos Pequenos junto à Estrela do Dia
É isto só que tenho para te dar em oferenda
Um istmo feito de terra e da minha alegria
E o sol que não tem preço nem está à venda
Leio Rainha da Paz, Laurinda, Teresa e Ana
Três nomes de barcos onde eu descubro
Os melhores momentos da minha semana
O resgate dum E-mail perdido em Outubro
É um istmo, é pedaço de terra, é um lugar
Um tempo suspenso nesta tarde de Inverno
A maré do Tejo baixou e não pára de baixar
Fora do ritmo do meu relógio tão moderno
Em Sarilhos Pequenos junto à Estrela do Dia
O poema é o istmo vagaroso em construção
À procura do teu olhar que não se despedia
Noutro fim da tarde perdido numa multidão
LORCA NO CAMINHO DO MONTIJO
Era pelo Inverno de cinquenta e sete.
No Porto Alto um homem de capuz e oleado
segurava uma lanterna com dois vidros pintados
e fazia alto com a outra mão.
A ponte sobre o Sorraia era de madeira
e só passava uma camioneta de cada vez.
Não havia ao tempo muitas Mercedes Benz
de cor verde e com a chapa do Estado.
Meu pai saudava o homem entre a chuva
e desejava-lhe uma boa noite impossível.
Se recordo estes passos e rituais
dos caminhos desse tempo
é porque aquele lugar marcava para mim
o principiar da circulação de uma temperatura
que me fazia lembrar Lorca.
Eu tinha aprendido a ler nos jornais.
Meu pai trazia-os à noite para casa.
Terá sido num «Diário Popular»
que li um texto sobre o poeta assassinado.
Mesmo sem conhecer os seus poemas
comecei a sentir naquele espaço
a respiração do verde e do vermelho,
a relva sem fim e o sangue dos touros,
o pó levantado pelos cavalos breves,
os gritos dos campinos sempre longe
e a noite sempre negra e sempre longa.
Mais à frente, a caminho do Montijo,
respirava o sal de Alcochete,
o sabor conservado de uma angústia serena,
a ideia imaginada de que estes campos verdes,
estas oliveiras e este som da alegria
rente à raiz de tudo
poderiam ter sido caminho
do poeta Federico Garcia Lorca.
Ainda hoje não sei porque cavaram
tão depressa os cabouqueiros da morte.
Sei que entre o Porto Alto e o Montijo
algures entre verde e verde
uma sombra esguia faz sinal aos deuses
e os deuses param.
Lorca poderia ter morrido aqui
à porta desta taberna, a caminho do Montijo.
BALADA DA SERRA DE S. MAMEDE
Ai que prazer estar perdido
Na Serra de São Mamede
Onde há sempre uma ribeira
Que só de olhar mata a sede
Onde há sempre um caminho
À espera de ser andado
E onde o branco das casas
Faz contraste no telhado
Ai que prazer estar perdido
Na Serra de São Mamede
Onde o relógio não corre
E pára se a gente pede
Onde o tempo dura mais
E o olhar tem amplitude
Onde o andar não desgasta
E o cansaço é mais saúde
Ai que prazer estar perdido
Na Serra de São Mamede
Onde se pescam os sonhos
Sem ser preciso usar rede
Onde o sol mais se demora
Onde a luz chega mais cedo
Mas o peso deste silêncio
Não se transforma em medo
Ai que prazer estar perdido
Entre Esperança e Nave Fria
Surgirá sempre um olhar
Capaz de dar luz de dia
A quem se perdeu na noite
Que envolveu seu coração
Mas se encontrou de novo
A caminho de São Julião
Ai que prazer estar perdido
Entre Caia e os Mosteiros
Porque os fumos das chaminés
São os sinais mais certeiros
Duma vida mais junto à terra
Mancha verde a multiplicar
Entre o apelo do Mundo
E o meu desejo de ficar
Ai que prazer estar perdido
Entre os Besteiros e a Parra
Para encontrar uma capela
Com o som de uma guitarra
Ai Serra de São Mamede
Grande desgosto que eu tenho
Não ser eu das tuas aldeias
Não ser também eu serrenho
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