quinta-feira, 8 de novembro de 2018

[0388] Joaquim Benite, a poesia bloqueada pela censura salazarista


Nasceu em Lisboa em 1943 e em Lisboa faleceu em 2012. Encenador, director teatral e poeta, foi jornalista: chefiou a redacção do “Notícias da Amadora”, onde criou as edições “Andaime”. Dirigiu a revista “Cadernos” e os “Textos de Almada”. Em 1970 criou o Grupo de Teatro de Campolide e em 1978 a Companhia de Teatro de Almada Joaquim Benite (nome adoptado em 2013). O teatro de Almada, também conhecido como Teatro Azul, tem o seu nome.


CANTIGA ALEGRE DE UM TEMA TRÁGICO

encontro um homem
no carro eléctrico
a decorar
o sistema métrico

vou contra o homem
digo-lhe vem
e o homem parte
no corpo de ninguém

quem era este homem
ou quem foi ou quem
terá sido? igual
aos outros que também

não vêm porque
ninguém vem
quando alguém
chama

ninguém deseja
que o carro eléctrico
esteja para além
do sistema métrico

tudo medido
e condicionado
pode ser que um dia
se cante outro fado

por enquanto é
preciso ser
tão prudente quanto
se pode ser

neste carro eléctrico
a população
não pode ser quem
oferece a mão

Lisboa é
a cidade modelo
quando alguém quer ser
mas querer não é ser

não pode chamar
pois não sabe quem
apenas pode voltar
a escrever bem


PRIMEIRO POEMA PARA A MANHÃ

Agora sou a criatura que prepara as asas para o voo
sou o chefe de estação que se esqueceu de apitar
sou a beata que falhou na missa
aparentemente o barro solto num jardim
perdido perdido
na imensidão das mãos
das curvas e dos sons das névoas que elas traçam
Sim hoje amor a tarde ou a manhã de nunca
hoje as balas o sangue a confusão
decisivas horas que se arrastam sem cor
e cerram janelas pombas de luto vermelho
Agora a partida com aviões silenciosos
áereo e possíveis os desejos
a dança a enxada
o campo juncado de berros oceânicos
as trevas a noite grandes infindáveis
e na sombra das casas
a luz brilha
e a esperança nasce
no grito do miúdo da quinta geração de estátuas
nas asas do primeiro anti-porteiro
Agora hoje choro sinto
o canto sobe
e há arestas quebradas
montras sem vidros
e bolos agia há bolos pão
e fome saciada
sou como um café
de muitos agrupados muitos de comboio e sempre direitos
Na metamorfose fatal o grito assoma
a criança rompe a dieta o leito
e pela primeira vez
é um chefe de estação esquecido
uma beata revoltada

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