terça-feira, 30 de outubro de 2018

[0348] NUNO REBOCHO, POEMAS DE TERÇA-FEIRA (4) Nuno Rebocho, a invasão do corpo


O habitual poema das terças-feiras de Nuno Rebocho: vadio de mundos (assim ele se chama), é, à sua maneira, um camaleão – absorve a cultura do ambiente que o rodeia. Assim aconteceu em Portugal, em Espanha, em Marrocos, na Córsega, em Cabo Verde. Tenta fazer jus à máxima: em Roma, sê romano.


EM CASA DE GARCÍA

fui a tua casa, Federico García. mas tu não estavas,
nem o Horto era o que então havia.
a porta fechada escondia lendas
vendidas com sobranceria.

tu não estavas, García, só o cicerone
da casa que não tiveste enquanto vagueavas
em busca da tua morte, mesmo a que não querias.
a tua casa, Federico, não é a tua casa:
é uma porta por onde se entra para um vão de escada
e uma escada por onde se trepa até aos silêncios.

granada nada sabe dos sortilégios
nem por onde rumam rotos de mortes,
nem por onde sonham despidos de mágoas.
a tua casa, García, já é branca e os curiosos
enfilam-se à porta com senhas nas mãos:
matam-te todos os dias, salvo nos de descanso.
e às cinco da tarde respeitam-te.

valem outras balas estas bulas de ironia
a cem pélas por visita, Federico García.
e os touros que então havia
e matavam como lhes cabia
são agora mansos ou embolados ou enojados.

crescem no Horto nem nardos, nem cardos
- só flores sem fantasia.
fui a tua casa, Federico García. mas tu não estavas.
os cicerones levavam-te para outra morte
em grupos de cinco. e cobravam a entrada.

Sem comentários:

Enviar um comentário