quinta-feira, 25 de outubro de 2018

[0325] Augusto Gil e a poesia de gazetilha


Augusto César Ferreira Gil nasceu em Lordelo de Ouro em 1873 e faleceu na Guarda em 1929. Advogado e poeta, foi Director-Geral das Belas Artes. Orientou-se por uma perspectiva neo-romântica e a sua poesia ganhou popularidade.


O EDITAL

Manuel era um petiz de palmo e meio
(ou pouco mais teria na verdade),
de rosto moreninho e olhar cheio
de inteligente e enérgica bondade.
Orgulhava-se dele o professor…
No porte e no saber era o primeiro.
Lia nos livros que nem um doutor,
fazia contas que nem um banqueiro…
Ora uma vez ia o Manuel passando
junto ao adro da igreja. Aproximou-se
e viu à porta principal um bando
de homens a olhar o quer que fosse.
Empurravam-se todos em tropel,
ansiosos por saberem, cada qual,
o que vinha a dizer certo papel
pregado com obreias no portal…
“Mais contribuições!” – supunha um.
“É pràs sortes, talvez” … outro volvia.
Quantas suposições! Porém, nenhum
sabia ao certo o que o papel dizia.
Nenhum (e eram vinte os assistentes)
sabia ler aqueles riscos pretos.
Vinte homens e talvez inteligentes,
mas todos – que tristeza analfabetos!…
Furou Manuel por entre aquela gente
ansiosa, comprimida, amalgamada,
como uma formiguinha diligente
por um maciço de erva emaranhada.
Furou, e conseguiu chegar adiante.
Ergueu-se nos pezitos para ver;
mas o edital estava tão distante,
lá tanto em cima, que o não pôde ler.
Um dos do bando agarrou-o então
e levantou-o com as mãos possantes
e calejadas de cavarem pão…
Houve um silêncio entre os circunstantes.
E numa clara voz melodiosa
a alegre e insinuante criancinha
pôs-se a dizer àquela gente ansiosa
correntemente o que o edital continha.
Regressava o abade do passal
a caminho da sua moradia.
Como era já idoso e via mal,
acercou-se para ver o que haveria…
E deparou com esse quadro lindo
duma criança a ler a homens feitos,
dum pequenino cérebro espargindo
luz naqueles cérebros imperfeitos…
Transpareceu no rosto ao bom abade
um doce e espiritual contentamento,
e a sua boca, fonte de verdade,
disse estas frases com um brando acento:
Olhai, amigos, quanto pode o ensino…
Alguns de vós são pais, outros avós,
pois só por saber ler, este menino
— É já maior do que nenhum de vós!


QUANDO AS ANDORINHAS PARTIAM...

A Cassianno Neves
Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.
Esta manhã um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.
Chegou-lhes ás alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,
--E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a primavera...


CANÇÃO DAS PERDIDAS
                    a Vianna da Motta

I
Quem por amor se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
- É Maria Magdalena...

II
Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!

III
Meu pai foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora – de pena...

IV
E há no mundo quem afronte
Uma mulher quando cai!
Nasce agua limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vai...

V
Aquele que me roubou
A virtude de donzela
Se outra honra lhe não dou,
-É porque só tive aquela!...

VI
Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d'agua cantante,
Quem te quer, pára um bocado.
Quem não quer, passa adiante...

VII
O meu amor, por amá-lo,
Pôs-me o peito numa chaga:
Deu-me facadas. Deixá-lo.
Mas ao menos não me paga!

VIII
Nem toda a agua do mar
Por estes olhos chorada
Daria bem a mostrar
O que eu sou de desgraçada!

IX
Como querem ver contente
Este pais desgraçado,
Se dão só livros á gente
Nas escolas do pecado...

X
Dormia o meu coração
Cansado de fingimento.
Bateste-me, e vai então
Acordou nesse momento.

XI
Se aquilo que a gente sente,
Cá dentro, tivesse voz,
Muita gente... toda a gente
Teria pena de nós!

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