quarta-feira, 24 de outubro de 2018

[0323] Hélder Proença, a poesia inadiada


Nascido em Bissau em 1956 e falecido também em Bissau em 2009, Hélder Proença foi político, professor, poeta e escritor. Interveio na luta armada pela independência do seu país e integrou o movimento “Mantenhas por quem luta”. Enviado para o Rio de Janeiro após a independência guineense, veio depois a ser eleito deputado e membro do Comité Central do PAICV. Foi Ministro da Defesa do Governo de Bissau. Assassinado numa pugna eleitoral, acusado de tentativa de golpe de Estado.


NAS NOITES DE N’DJIMPOL

Nas noites de N’djimpol
vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro.
Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando!
Vi braços robustos e livres
sonho campos loiros
espigas dardejando ao sabor do vento
brisas e pássaros cantando
sol e flautas beijando o suor fecundante.
Nas noites de N’djimpol
Vi a virtude dos homens sem amanhã...
légua a légua
conquistando o caudal do futuro...
Vi-os nas ondas tenebrosas
enfrentando e conquistando
Sim,
Vi nas noites de N’djimpol
sonho mamãe terra
sonho compassos rítmicos no capinzal
dilatando a fé do homem-terra
o horizonte e o brilho das nossas mãos.
Oiço o grito das brisas loiras...
na imensidão farta dos campos
sim mamãe terra
firmemente sonho
na certeza gritante
de sermos loiros e fortes
como espigas e o sol
fortes e loiros…
Mamãe terra
Sonho mas juramos-te!


NÃO POSSO ADIAR A PALAVRA

Quando te propus
um amanhecer diferente
a terra ainda fervia em lavas
e os homens ainda eram bestas ferozes

Quando te propus
a conquista do futuro
vazias eram as mãos
negras como breu o silêncio da resposta

Quando te propus
o acumular de forças
o sangue nómada e igual
coagulava em todos os cárceres
               em toda a terra
              e em todos os homens

Quando te propus
um amanhecer diferente, amor
a eternidade voraz das nossas dores
era igual a «Deus Pai todo poderoso criador dos céus e da terra»

Quando te propus
olhos secos, pés na terra, e convicção firme
surdos eram os céus e a terra
receptivos as balas e punhais
               as amaldiçoavam cada existência nossa

Quando te propus
abraçar a história, amor
tantas foram as esperanças comidas
insondável a fé forjada
               no extenso breu de canto e morte

Foi assim que te propus
no circuito de lágrimas e fogo, Povo meu
o hastear eterno do nosso sangue
para um amanhecer diferente!


BADJUDA

Neste desdém...
vida marcha num vaivém
baloiçando
criando origens desconjunturadas
e tu badjuda n’a
desdenhosamente marchando no «infortúnio da vida»

Na certeza dos teus sonhos
de jardins suspensos
dum engate fixe do fim-de-semana
e de altas curtições
ao gosto de sol-praias
dos convívios-boîte e do jazz-band
excitando a confusão dos lábios, das luzes e do sexo:

A-A-A-Ahh... baby
O sabor drogante do teu destino badjuda n’a!
mas continua...
sepulta e bem sepultadinho
a dignidade em alcatifas confortáveis
(pelo menos sairá mais confortável, badjuda n’a)

Deixa exalar
não negues os bafos MINI COOPER e VOLVO
não, não negues o exalo suave da prostituição clássica:

O vestidinho te ajustará melhor, badjuda n’a!
As calças apertadinhas
chamarão mais clientes
(e as fendas ficarão mais nítidas badjuda n’a)

Terás uma Corte distinta
Que magistral personalidade!
E tuas pestanas azuis, verdes ou cinzentas
tuas unhas de gato lagária — de luta e violácea
e tua cara, aqui verde acolá azul
que pintura catalogar an! extraordinária badjuda n’a!

Sim
falarás um português melhor — da Metropóle —
e o deserto do teu sonho encherá de flores
então poderás passar seguramente
em todas as artérias góticas da ilusão
que todos te admirarão
e com mais descontracção
subirás, subirás, subirás
até entranhares
crua e sangrenta nas vísceras do anonimato
O jazz e a confusão das luzes te esperam.

2 comentários:

  1. Gosto bastante desse autor de forma, que escreve me encanto de vez em quanto, quando li o seu poema me observo sua face ao redor do meu colo interior e uma outra coisa, o seu poesia não é bolo de receita tal como no outros escritores....

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  2. Obrigado, caro/a leitor/a pela sua participação mas gostaríamos que não fizesse o seu comentário anonimamente.

    Abraço,
    Joaquim Saial

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