sábado, 22 de setembro de 2018
[0171] Jorge Velhote revisitado
Nascido no Porto, em 1954, Jorge Velhote revisita este portal.
Poeta, declamador, agitador cultural e fotógrafo entre coisas mais, é sempre bem-vindo.
“Ibn Mucana” honra-se com a sua colaboração.
É EXTENSO O MOMENTO. UM POUCO RUIDOSO PARA OS MEUS PENSAMENTOS.
A.
1. Há lugares que são como a própria tristeza. Ou a água onde se inunda o olhar. E escavas o vento.
2. Se observares como na carótida golfa o sangue em borbotões o que vês é um monólogo secreto atravessando as palavras com um bater de asas inevitável que escutas desde a infância.
3. A cena é seguramente absoluta uma vocação cúmplice da alma uma advertência fúnebre que não ignoras como se deus no seu entusiasmo se arredasse do espelho.
4. Nessa obscuridade anulas a fronteira fértil como se morresses.
5. Trata-se de desenhar uma sombra com a grafite do coração - apenas a sombra - para que no ar se eleve a vertigem como nas campânulas o ar.
6.Então é íntimo de tudo o tempo ou matriz escada que nomeias enquanto aguardas o lume sábio.
7. Inaudível é muitas vezes o que as janelas rasgam mesmo que mergulhes em pleno voo.
8. Tentas tocar a aridez os destroços mais negros da floresta e é em vão que afagas a cicatriz das tábuas.
9. Com uma lâmpada secreta buscas um determinado vestígio que sabes extinto. Ou talvez perdido.
10. Se fosse uma labareda o infinito levemente nuvem enrugado na tua mão seria a sua presença.
11. E por vezes desponta em ti como se uma pedra antiga incorrupta.
12. Nesse ritmo a paciência é um verbo íntimo um eco em fulgor no ouvido.
13. Assim o que é visível vinca o que levemente se retira ou destaca do alicerce e discrimina fugaz quase paisagem sem lugar.
14. É uma espessura que urge para ajuste em exercício que persiste em dor e mutilação implodindo na mão que aviva.
15. Um prodígio que cicatriza o ver e pobre é na sua agudeza funde em penúria imensa e empolga como língua.
16. Vês os montes extensos numa insónia de lâminas perfeitos como só um pensamento derrama.
17. O que justifica a beleza se é agonia e tormenta o que tocas.
18. Além da morte à lavoura para esgotar a luz concedes à cegueira um fragmento fiel e impune.
19. E se de noite estoira um relâmpago à penumbra súbita submetes a obscuridade como se soubesses o sentido.
20. E sepultas uma corda que ata o destino das cartas e a dobra dos mapas.
B.
21. Não te afastes nunca do rio onde baptizaste o olhar é com ele que chegarás ao fim da terra.
22. O que vires erguerás com as mãos até à boca se seguires as sombras diárias das nuvens.
23. Sabes que as aves destinam no seu voo um tempo para as árvores faz assim no deserto se aí te encontrares.
24. E não tenhas medo de aí residir pois o teu sangue testemunhará o fervor do teu coração
25. Partilharás os prodígios com lágrimas e a paixão não omitirás e serás justo e verbal padecendo.
26. Ao vento ousarás lançar sementes e todos os dias em silêncio regressar a casa.
27. Inaudível e prodigioso será o momento de ver lacerar a terra as folhas numerosas das tuas mais secretas e rudes palavras.
28. E nada dirás ainda até que pelo teu olhar saibamos sorrir pelo menos um instante.
29. Deixa então que a mão repouse as sandálias sob as estrelas até que na tua pele amanheça outra pele.
30. Saberás ser justo congregando agora todas as palavras como anjos piedosos ou milagre.
OS GATOS DE MINHA MÃE
Os gatos da minha mãe caminham
sobre as margens das coisas simples.
Não vão à praia. Sinalizam
a preguiça invadindo silenciosos
o regaço das visitas. E escutam,
privilegiados, obscuras conversas
sobre desnecessidades ou
invasivas devassas alheias.
Olham soberanos o nosso
olhar onde passam
obrigatórios como sombras
ou luz – e quando regressam
com passinhos de veludo
dos seus desvairados lugares
traduzindo a nossa ignorância
instauram a evidência, o conhecimento
fortuito, os limites imputáveis
à ternura com que, sedosos
e felinos, se deixam afagar.
Apenas não arborescem.
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