Pseudónimo literário de Francisco Ludovino Cleto Garção, Nicolau Saião dá-nos a honra de nos revisitar. Nascido em Monforte do Alentejo, reside em Portalegre, ex-funcionário do Centro de Estudos José Régio, meteorologista, jornalista, escritor, actor declamador, poeta e artista plástico. De orientação democrática e libertária, foi também um resistente através da sua escrita e da sua acção, mas sem obrigatoriedade partidária ou de escola literária. Esteve relacionado com as tertúlias surrealistas de Lisboa. Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu-lhe o Prémio Revelação/Poesia.
EROTICA LEXICON
1. (a)
A – não o simples começo
do amor alevantado da árvore que se descobre
sobre a cabeça
num espanto de olhos de quem
se ama no chão do campo
ou de pé na penumbra numa viela esconsa.
(Que aí seria mais
o vulto escuro
de casas na neblina ou o vidrado
de anónimas janelas). Mas sim
o a de abrir
de ficar com o alto das coxas preparado
para maiores desvelos, sem que a mão
por detrás pela frente
atabafe o grito inocente de alguém
virgem ainda ou hábil fugazmente
num ardil de maior gozo. O a do fim
da meia preta se possível, ou de grosseira lã com seu til
sensual mais o resto da roupa lá no centro
do espasmo ou da voragem.
O a que se exerce na palavra pássara
nosso amorável gosto de beijar de ter
o vôo ao rés da boca nos sentidos
de um abalar da língua p’ra norte ou ocidente
com a tensa amargura de tudo se acabar.
O a da salvação de enormíssimas tardes
do passado da aventura rara
que jamais se esqueceu
porque foi a nossa dura condição. O a do gato
da tímida coelha ou do cavalo
do cão fremente na rua sem que uma voz
reparo lhe faça por animal o ser. Ou o a
alucinado do enamorado por amor se perder
- um destino arrancado
do denso doce pecado
no meio do coração.
E o a do não
do nunca mesmo nunca poder ser
de jamais a dois
nos tempos do Tempo se acordar
e voltar a arder.
O a sagrado e ferido
enfeitiçado dividido
de se matar de se morrer.
2. (b)
Já reparou, disse Jolce, que não há algarismos nem números começados por bê? Ora pense um bocadinho…Para ter um bê precisa de chegar ao bilião. Quase o tempo da Terra!
Tem razão, respondeu Belinda um pouco admirada depois de alguns segundos de silêncio. Porquê aquele raciocínio naquela altura da conversa? pensou de si para si. Um pequeno mistério que deslindaria mais tarde, quando Jolce já não constituísse para ela qualquer segredo, quando o tivesse reduzido à condição que lhe competia de fogoso cobridor, de doce urso roncante sobre a cama de casal – larga e resistente como ela gostava, como ela exigira no seu quarto de meiga aventureira para viagens sem retorno quando as férias parece que são para sempre.
A verdade é que aquele homem a intrigava desde o princípio. Com o seu rosto cinzelado de arcanjo um pouco brutal e o torso de pugilista amador, assim que o vira no átrio do hotel ficara a cismar. Caçadora de férteis recursos, não lhe passara despercebido o olhar algo febril e o vulto que se recortava, pujante, sob os calções de banho. Ele transportava na mão esquerda um copo de curaçau gelado que fora buscar ao bar e quando os seus olhares se cruzaram ela percebeu que tinha ali um bocado de destino. Seguira-o até à piscina. Chegar a um jantar a dois fôra uma simples naturalidade de fêmea acelerada e experiente nos seus trinta anos de gozadora de rins másculos e sapientes.
E notou ainda, disse ele com a sua voz de baixo enquanto a olhava bem de frente, a mão arrepanhando um pouco a toalha cuja alvura, nem ela sabia porquê, lhe perturbava os sentidos alerta, que algumas das palavras mais inquietantes, mais significativas, é por bê que começam? Beemoth, bendito, Babilónia, bondade, bifronte… Já tinha reparado?
Sob a mesa, com o seu pé Belinda tocou no pé de Jolce. Pisou-o mesmo com decisão e a dureza sentida deixou-a um pouco admirada.
Mas há outras palavras, pelo menos tão significativas embora bem menos inquietantes, que começam por outras letras, disse pausadamente com a voz um pouco rouca. E atacando sem retóricas escusadas e paninhos quentes: Palavras como possui-me, como vem-te dentro de mim, como mete-mo também aí… Não acha?
Sentira chegada a altura de lhe testar de caras a qualidade de macho esclarecido, de jogador de entendimentos e de mundanais sabedorias. Estendeu a mão e agarrou na mão dele, junto da garrafa de Chateau-Yquem e do copo de vidro facetado a que uma suave coloração cor-de-rosa pálido dava uma ténue luz.
Olhou Jolce e estremeceu. O seu rosto parecia ter ganho uma doçura insuspeitada: os traços mais suaves e ao mesmo tempo estranhamente endurecidos tinham ficado como que imersos numa ligeira sombra, tal qual sucede no princípio do entardecer às coisas que nos envolvem. Na testa que os cabelos castanhos claros coroavam parecia ter-se iluminado, de repente, uma pequena estrela.
No pulso, ao rés das veias salientes, ela apalpou uma leve rugosidade e depois distinguiu - enquanto a respiração se lhe adensava - um sinal diminuto, que contudo se percebia ser constituído por três letras muito juntas, num relevozinho finamente traçado: o bê, o duplo fê e o él.
Quando levantou os sugestivos olhos doirados viu então, talvez só com um leve toque de surpresa, enlevo e algum terror, que os olhos esverdeados de Jolce a miravam fundo, bem fundo, com todo o conhecimento e uma absoluta melancolia.
MADRUGADA
No interior a polpa: um nó convulsamente
preso na carne feita para amar
No exterior partículas
tão exactas e puras como um dia. No depois das paredes
nesse ar que se dissipa
nesse negrume fixo e já disperso
- para sempre encontrado -
o clarão que nos une e que nos leva
entre as horas e os tempos, entre vozes que findam.
A cor o mundo o nome
eternamente nossos.
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