Alexandre Manuel Vahia de Castro O'Neill de Bulhões nasceu em Lisboa em 1924 e aí faleceu em 1968.
Foi importante poeta do movimento surrealista português e várias vezes foi encarcerado pela PIDE.
Frontalmente contestatário do salazarismo e, por outro lado, do neo-realismo veio a demarcar-se do grupo de Cesariny (já aqui referido) por volta de 1949.
Recusou adesão a qualquer agrupamento político, tomando uma atitude irónica e individualista, o que o levou a distanciar-se das tertúlias.
Também escritor e guionista.
AMANHÃ ACONTECEU
Que é notícia?
Um hoje que nunca é hoje,
um amanhã que é já ontem
entre ontens que se perdem
no anteontem dos anos
no tresantontem dos lustros...
Que é notícia?
Amanhã acontecido,
notícia é sempre um depois,
é um a viver vivido...
Que é notícia?
Notícia é devoração!
Aí vai ela pela goela
que há-de engolir tudo e todos!
Aí vai ela, lá foi ela!
Nem trabalho de moela
retém notícia...
Notícia sem coração!
Que é notícia?
Cão perdeu-se! Por que não?
Cão achou-se! Ainda bem!
Ainda melhor, por sinal,
se o cão perdido e o achado
forem um só e o mesmo
«lidos» no mesmo jornal!
Que é notícia?
Damos notícia um ao outro
do nosso interesse comum.
Fui Cavalheiro amanhã.
Ontem Senhora serás.
Como eu não há nenhum!...
Que é notícia?
Quando o primeiro tortulho
se abre no céu (silhueta
que em símbolo se tornará)
onde estou, estouvava eu?
Estava com a tia Henriqueta...
Que é notícia?
Fechada para balanço,
tia Queta dormitava.
Com a folhinha nos joelhos,
do tortulho, que treslera,
já em feto se engelhava...
Que é notícia?
Das convulsões deste mundo
dava meu pai a versão:
- Ailitla por toda a Europa...
O guarda-roupa, meu filho,
varia, a tragédia não...
Que é notícia?
O bom do velhote ia
na terceira dentição...
Que é notícia?
Alcatruz que se abalança
a tornar à sua água?
Já o de Éfeso sabia:
não se molha duas vezes
o lenço na mesma mágoa...
Que é notícia?
Notícia em primeira mão
na minha mão infantil:
o papagaio empinado
no claro céu da manhã,
meu jornal publicado
por cima de tanto afã...
Mas terá sido notícia?
Que é notícia?
O ENFORCADO
No gesto suspensivo de um sobreiro,
o enforcado.
Badalo que ninguém ouve,
espantalho que ninguém vê,
suas botas recusam o chão que o rejeitou.
Dele sobra o cajado.
ADEUS PORTUGUÊS
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti
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